terça-feira, 11 de maio de 2010

A Última Noite na Terra

A propriedade era toda cercada por muros, e apenas alguns trechos destes permitiam entrever partes do jardim. A recepção já começara, os convidados já se espalhavam pelas mesas e aléias, todos com copos na mão e comentários na boca, provavelmente afiados e espirituosos, prontos para ganhar o mundo.
Ele não se sentia intimidado, apenas não tinha vontade de festejar nada. Havia imaginado que se sentiria esquisito com o smoking, mas até já havia esquecido que trajava um, alugado na véspera, o que lhe custara quase todo o dinheiro que tinha no bolso, sobrando apenas o que tomara emprestado, sem autorização, ao irmão.
Não havia ninguém vestida de noiva. Provavelmente ela já trocara de roupa. Talvez até já houvesse partido em lua-de-mel. E ele se perguntava, o que diabo estava fazendo ali? Não conhecia ninguém, com exceção dela, e já não a via há tanto tempo, que até parecia presunçoso apresentar-se como amigo da noiva. Aos quinze anos, idade em que a conhecera, ela já tinha certa pose de rica, mas morava em um apartamento, ainda que luxuoso, vizinho ao dele. Evidentemente, o pai dela se dera muito bem, no que se metera a fazer.
Ele ficou ainda alguns minutos, procurando-a entre os convidados, mas não a localizou. Já havia decidido ir embora, quando percebeu que alguém se aproximava.
"Boa noite, cavalheiro."
"Boa noite."
"Posso ajudar em alguma coisa?"
Era um dos seguranças.
"Ah ... não, não, eu ... "
"Nesse caso, eu lhe peço que se retire."
Ele tirou o convite do bolso.
"Na verdade, eu fui convidado para a festa."
O segurança estendeu a mão.
"Permite?"
Foi então conduzido pelo segurança, em meio a um oceano de automóveis estacionados, até a entrada principal da mansão. Em frente ao portão, o segurança se deteve, e fez uma ligeira mesura, apesar do olhar condescendente.
Os blocos de pedra encravados no gramado, no caminho de entrada, se bifurcavam. Ele poderia ter ido direto ao jardim, mas preferiu manter-se em linha reta, e foi dar no imenso salão de entrada da mansão. Um magnífico lustre iluminava o hall (Um 'magnífico lustre' é terrível, eu sei, mas não há outra definição). Duas escadas semicirculares, uma de cada lado, levavam aos aposentos do pavimento superior. Ele as observava, quando viu que um rapaz, com passo hesitante, descia pelo lado esquerdo. Veio em direção a ele.
"Sim?"
"O lavabo?", disse o rapaz, sorrindo.
"Não, não. Eu acabei de chegar."
"Ah, sim, claro. Eu sei. Um pouco atrasado, não? Bem, eu lamento lhe informar, mas você perdeu o melhor da festa. Na verdade, eu também perdi. Todos aqui perdemos, ocupados que estávamos com coisas sem importância. Cheguei a tempo apenas de ver o rescaldo do incêndio."
Ele ficou sem saber o que dizer.
"Na verdade", continuou o rapaz, "todos ali perderam o melhor da festa.
Olhava na direção do jardim.
"Onde estão os noivos?"
O rapaz o olhou, pela primeira vez com curiosidade.
"Você é amigo dele ou dela?"
"Dela. Onde está ela?"
O rapaz ficou pensativo, por alguns segundos, olhando a larga porta envidraçada que levava ao jardim da mansão. Depois voltou-se para ele:
"O que?"
"A noiva. Onde está ela?"
O rapaz tornou a ficar pensativo. Depois, deu de ombros:
"Não sei. Estará no jardim, vivendo. E você?"
"Eu gostaria de cumprimentá-la."
"Claro. Claro. É a regra do jogo. Na verdade, tudo isso parece mais um jogo sem regras, não é? E esta é uma festa estranha, sabe? A gente aqui embaixo, enchendo a cara e mentindo uns pros outros, com consentimento mútuo, é claro, e o grande homem lá em cima, pendurado pelo pescoço, para que seus pés nunca mais toquem o chão novamente."
Parou de falar, e observou atentamente seu interlocutor.
"Não me olhe assim", continuou o rapaz, "eu não estou bêbado. Ainda não, pelo menos. Eu sei que isso parece conversa de bêbado, mas eu não estou bêbado. Ainda não."
"Quem é o grande homem?"
"O grande homem, ora", disse o rapaz, apontando para o pavimento superior da mansão. "O patrocinador dessa esbórnia. O homem de cujos bolsos saiu isso tudo. Contra a vontade dele, é claro."
"De quem você está falando?"
O rapaz tornou a observá-Io, como a um garoto para quem tudo precisa ser explicado detalhadamente.
"Valha-me Deus! É preciso explicar tudo. Você sabe quem disse isso, uma vez?"
Ele desviou os olhos, e fez menção de dirigir-se ao jardim. O rapaz pousou a mão sobre o ombro dele.
"Espere. Deixe eu lhe explicar. Eu estou falando dessa festa em que você está. Para a qual você foi convidado. Você deve ter um convite, não tem? Você já percebeu que uma festa, uma recepção, ou que melhor nome tenha essa porra, você já percebeu que uma festa está acontecendo nesse pardieiro, não percebeu? Então. Claro que já percebeu. Para entrar aqui, você deve ter recebido um convite. E festas custam dinheiro, entende? Alguém tem que pagar por elas."
O rapaz parou, e mergulhou nos próprios pensamentos.
"Afinal, ele pagou duplamente por esta."
Ele então deu as costas ao rapaz, mas este tornou a por a mão sobre o ombro dele, levantando a outra, com a qual segurava uma garrafa.
"Está aqui", disse o rapaz, "não precisa mais procurar."
Apontou, com o dedo, o rosto de um homem desenhado no rótulo.
"Um santo homem."
"Onde você conseguiu isso?"
"Ah, não se preocupe. É o que não falta nessa casa."
"Você é íntimo da casa?"
"Claro que sou" , disse o rapaz, com uma expressão deliberadamente cômica de espanto, logo substituída por outra, igualmente cômica, de dúvida.
"Quer dizer, acho que sou."
A mão do rapaz continuava sobre o ombro dele. Ele tentou se desvencilhar, mas o rapaz apertou-o com firmeza.
"Espere, espere. Olhe, eu não estou jogando conversa fora, não. O grande homem ... "
"Quem é o grande homem?"
O rapaz o observou, indagador.
"Você conhece esta casa? É íntimo da casa?"
"Não", ele disse.
''Você é amigo de quem? Do noivo ou da noiva?"
"Da noiva, eu já disse."
"E como é que eu não te conheço?"
"Eu também não te conheço."
"E não conhece o grande homem, também? Não sabe quem é o grande homem?"
"O pai dela?"
O rapaz levantou o polegar e encostou o indicador na própria têmpora: "Bingo!"
"Eu nunca o vi. Por que ele não desce?"
"Ele não pode!"
''Por que não?"
"Eu já disse. Seus pés jamais tocarão o chão novamente."
"É, você já me disse isso. Mas eu ainda não entendi o que você quer dizer com isso.
Por que os pés dele jamais tocarão o chão novamente?"
O rapaz o encarou, com ar grave:
"Porque ele está pendurado pelo ... "
Nesse instante, ambos ouviram elevar-se uma voz. Um homem vinha na direção deles, pronunciando um nome de forma não muito clara. O rapaz, então, tirou a mão do ombro dele, e observou o homem que se aproximava, provavelmente tentando reconhecê-Io, o que só aconteceu quando o homem parou perto deles.
"Ah! É você", disse o rapaz.
Com um sorriso, o homem ensaiou uma desculpa:
"Espero que ele não o tenha aborrecido."
"Não, não", ele disse. "Acho que ele estava tentando me divertir."
O homem sorriu.
"Eu imagino. Eu percebi que você parecia um tanto isolado. Sente-se deslocado? Por que não se junta aos outros, lá fora? É amigo da noiva?"
"É, eu sou amigo dela. Mas tem alguns anos que a gente não se vê. Na verdade, eu nem sabia que ela ainda tinha meu endereço. Nós moramos no mesmo prédio, há alguns anos. Eu ainda moro lá."
O homem sorriu, assentindo com a cabeça. Indicou, com o olhar, a larga porta envidraçada que levava ao jardim da mansão.
''Por favor", disse o homem, estendendo a mão na mesma direção.
"Obrigado."
O homem pegou o rapaz, que se mantivera singularmente calado durante a interrupção, e conduziu-o pelo braço ao interior da mansão, sussurrando algumas palavras ao seu ouvido. Ele se dirigiu ao jardim, então. Seqüestrou, da bandeja do garçom mais à mão, o primeiro copo da noite, e pôs-se a procurar. Não havia ninguém vestida de noiva. Houvesse alguém, e sua busca teria sido facilitada. De súbito, voltou o olhar para a mansão, e de imediato reconstituiu, mentalmente, com precisão, o rosto dela. Era fácil. Bastava colocar o rosto do rapaz com quem estivera falando em um corpo de mulher, encompridar e alisar os cabelos finos, dar à pele um tom menos pálido, engrossar-lhe as sobrancelhas, afilar os lábios, e pronto. Tentou, então, vasculhar na memória alguma lembrança do irmão dela. Era difícil; deu-se conta de que não· o teria visto mais que quatro ou cinco vezes enquanto moraram no mesmo prédio. E o contato com a irmã excedia o outro apenas em intensidade, não em quantidade. Mas agora seria mais fácil identificá-la, caso a encontrasse no jardim.
Ele começava a sentir-se mais relaxado. Trocou o champanhe pelo uísque, e alguns minutos e copos depois, não havia mais motivo para que se sentisse diferente ou deslocado. Certamente ele não pertencia ao segmento social aparentemente dominante no ambiente, mas o fato de que todos os homens trajassem smoking parecia abolir as supostas diferenças. Ele filosofava sobre o tema, e tentava adivinhar quantos ali trajavam roupas alugadas, quando o homem que o livrara do irmão da noiva abordou-o, amistoso.
"E então, já cumprimentou a noiva?"
"Não", ele disse. "Eu ainda não a vi."
O homem, que era alto, esticou o pescoço num esforço para localizá-la.
"Aquele rapaz que estava conversando comigo ... "
"Sim?"
"É o irmão dela, não é? Eu só reconheci ele depois. Na verdade, eu mal cheguei a conhecer ele."
"Eu tenho a impressão de que a noiva está ali, junto à piscina. Quer vir comigo? Dentro de mais alguns minutos ela partirá, em lua-de-mel."
"E o pai dela? Por que ele não está aqui?"
"Quem disse que ele não está aqui?"
"Ele, o irmão da noiva. Ele me disse que ... "
Parou. O homem o observava, sem o habitual ar amistoso.
"Ele está indisposto, ligeiramente indisposto. Esteve o dia todo assim, o que é natural, e sequer pôde comparecer à cerimônia do casamento."
Ele compreendeu, então, a sua pequena indiscrição. Observou o homem, que desviara o olhar. Era elegante, e falava pausadamente. Talvez fosse uma espécie de mordomo, ou o próprio. Ele nunca falara com um mordomo antes, sequer vira um, até então.
"E então? Não quer vir cumprimentar a noiva?"
"Claro."
Nesse instante, alguns sons simultâneos se elevaram, sobre o som da música que um pequeno conjunto tocava, do outro lado do jardim, e sobre o zumbido abafado das conversas entre os convidados. Uma voz masculina, alterada, um grito estridente de mulher, seguido de outros mais discretos, o som de um corpo caindo pesadamente na piscina, e um murmúrio generalizado de espanto.
"Merda!", disse o homem, e correu em direção à piscina.
Ele aproximou-se do local do incidente, com a curiosidade dividida ao meio. Tentava, ao mesmo tempo, ver o homem que caíra na piscina, e identificar o rosto dela, em meio aos convidados que se aglomeravam. Não a viu, mas viu o homem, auxiliado por alguns convidados e garçons, retirar da água o irmão da noiva, com alguma dificuldade.
O incidente passou, naturalmente, a ocupar a atenção de todos. Enquanto o homem conduzia novamente o irmão da noiva ao interior da mansão, os convidados retomavam suas rodas, formavam outras, algumas mulheres investigavam os vestidos, para verificar se haviam sido atingidos pelos respingos, e ele retomava sua tarefa interrompida.
Mas foi novamente interrompido. Uma mulher, com expressão elegantemente esbaforida, sentara-se a uma mesa, próxima a ele. Fora uma das mais atingidas pelo incidente, pois seu vestido prateado estava salpicado de gotas d'água. Ele aproximou-se dela, e ela então abriu um largo sorriso. Era jovem, e muito bonita.
"Alguém pode me fazer o favor de explicar o que está acontecendo aqui?"
Deveria estar histérica com o estrago provocado pelo incidente, mas ria com franqueza. Depois de admirar, discretamente, os dentes dela, por alguns segundos, ele disse:
"Posso ajudar em alguma coisa?"
Ela procurava sacudir a barra do vestido. "Olhe só para isso! Ficou encharcado!"
Tirou os sapatos, e ele admirou discretamente os pés dela, por alguns segundos. "Meus pés estão molhados! Segure aqui."
Ele segurou os sapatos dela. Ela enxugava os pés com guardanapos de papel, que estavam sobre a mesa, em prendedores metálicos.
"Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?"
"Acho que o irmão da noiva exagerou um pouco na dose", ele disse. Ela olhou para ele, sem se interromper:
"Isso não é novidade. Quando é que ele não exagera?"
"Ah", fez ele. "Então é sempre assim?"
"Você não conhece ele?"
"Conheci ligeiramente, há alguns anos. Na verdade, eu sou amigo da noiva."
"Você me conhece? Eu conheço você?"
"Acho que não."
"Eu não conheço você. E sou amiga dela há muitos anos."
"Eu sei. Eu também conheci ela ligeiramente. Na verdade, além de cumprimentá-la, eu queria também descobrir por que ela me mandou o convite. A gente não se vê há tanto tempo."
"Existem coisas mais difíceis de descobrir, eu acho. E se vocês só se conheceram ligeiramente, por que ela convidou você?"
"É justamente o que eu queria descobrir."
"Você a conheceu onde? Na televisão?"
"Não."
"Pronto, meus pés já estão secos."
"Seus sapatos", ele disse.
Ela pegou mais alguns guardanapos, e começou a enxugá-los. Ele se repreendeu, por não ter tido aquela iniciativa.
"Aquele desgraçado enfia o pé na jaca, e sobra prá quem tá por perto", ela disse, já sem o mesmo humor. Por algum motivo, o incidente perdera o componente cômico que a fizera rir
anteriormente.
"O que está acontecendo aqui, afinal?" Ela olhou para ele:
"Uma recepção. Houve um casamento, você não lembra?"
"Eu não fui ao casamento."
"É" ela disse, "você não foi, o pai da noiva não foi, também não dá o ar da graça na recepção ... assim também já é demais."
"Ele não se dá com a filha?"
Ela tomou a olhar para ele, desta vez espantada:
"Não se dá? Com a filha? Ele é louco por ela, louco apaixonado!" E, depois de alguns segundos:
"Apaixonado até demais. Aliás, são todos eles, pai e ftlho, tão apaixonados por ela. E aprontam, os dois, um vexame desses, no dia do casamento dela."
"Como assim?"
"Mas ele, ao menos, devia ter um pouco mais de dignidade", continuou ela, ignorando a pergunta. "Os dois, eu quero dizer, mas principalmente o pai. Que ele não aprove o casamento, tudo bem, ou não goste do noivo, é um direito dele, é compreensível. Se justifica. Mas ele podia ser um pouco superior, e ao menos comparecer à festa da filha. afinal, é a única."
"Eu entendo. Ele não aprova o casamento. Por que?"
"Você não sabe? Você não é amigo da noiva?"
"Sou, quer dizer, fui, há muito tempo. Eu nem sei por que ela me convidou. Quer dizer, desconfio. Mas, prá falar a verdade, eu só lembrei do rosto dela com exatidão ainda há pouco, quando conversei com o irmão dela. Eles são muito parecidos, não são?"
"Você conversou com ele?"
"Sim, logo que eu cheguei."
"E ele estava em condições de conversar?"
"Estava. Quer dizer, não falava coisa com coisa, mas conseguia conversar."
"Eu imagino."
"Ele estava com uma garrafa de uísque na mão."
"E quando é que não está?"
"Escuta, me diz uma coisa. Por que o pai não aprova o casamento? Ciúme?"
"Você não sabe?"
"Não."
"Você não lê jornais? Você não freqüenta esse meio, não é?"
"Colunas sociais, não", ele disse, respondendo a primeira pergunta.
"É a única parte que presta", ela disse.
Ele pensou que ela ficaria ofendida, ou espantada, com a observação dele, mas ela parecia orgulhosa ao exprimir sua opinião sobre o assunto.
"Você não conhece o noivo?"
"Não."
"Nunca ouviu falar dele?"
Deu-se conta, de súbito, de que esquecera o nome impresso no convite. Ficou sem saber o que dizer, embaraçado pela gafe.
"Bom, deixa prá lá. Na verdade, eu tenho a impressão, bem íntima, e bem nítida, de que ela está cometendo um erro. Mas eu não disse isso a ela, é claro. Poderia ser mal-­interpretada. " Seu rosto, de repente, assumiu um ar sonhador. "Ao mesmo tempo, é tudo tão ... "
"Tão o que?"
Ela olhou para ele:
"Não sei ... tão .. .irreal, eu acho. Parece uma fantasia."
"Todo casamento tem um quê de fantasia, eu acho."
"Como assim?"
"Ah ... como quando os noivos prometem fidelidade, por exemplo."
"Bobagem", ela disse, sem rir. "Não é disso que eu estou falando. É que essas coisas que começam assim, com esse ar de fantasia, geralmente terminam ... puxa, eu quero dizer que ...
droga, prá que casar com um médico, um dentista, ou um engenheiro? Meu Deus, seria tão mais ... tão ... "
Desistiu, aparentemente, de procurar a palavra certa. Ele, é claro, não tinha a menor idéia do que ela queria dizer.
"Qual é a profissão do noivo?"
"Profissão?", ela disse, rindo. "A profissão dele?"
"É. Qual é a profissão dele?"
"Ah ... digamos que ... digamos que a profissão dele ainda não foi regulamentada. Profissão não, atividade. Embora seja, como é que eu posso colocar ... uma atividade amplamente tolerada. E até dá um certo status, como você pode ver."
O riso, em seus lábios, fora desaparecendo aos poucos. "Mas qual é essa atividade?" Ela não respondeu. Uma certa movimentação começava a agitar os convidados, que pareciam dirigir-se a um ponto específico, no jardim. A mulher se levantara, excitada.
"Meu Deus! Será que eles já vão embora? Eu tenho que falar com ela. Ai, eu não acredito que ela vai embora sem falar comigo!"
E deixou-o, pressurosa, levantando a barra do vestido para andar mais rapidamente. Foi abrindo caminho no meio da aglomeração, com surpreendente facilidade. Ele a seguiu, então, mas sem a mesma sofreguidão, embora uma voz quase inaudível, em sua cabeça, o alertasse que era preciso apressar-se, se ele queria, ainda, cumprimentar a noiva. Fora isso, tinha a cabeça perfeitamente vazia de pensamentos e perguntas, apesar de todas as informações novas. Nas mesas, os copos há pouco abandonados ainda continham restos de líquidos, mas nenhuma idéia extravagante lhe passou pela cabeça. E parecia cada vez mais estranho ser convidado, após anos de separação, para o casamento de uma antiga conhecida, e não dirigir-lhe a palavra.
Incorporou-se aos convidados, tentando abrir caminho, como sua antecessora, de quem já
perdera o rastro. Mas, por algum motivo que lhe escapava à compreensão, não obteve o mesmo sucesso que ela, e ficou retido. Como ela, ele se insinuava, ameaçava empurrar, usava os cotovelos, mas os convidados que cediam ao seu assédio eram prontamente substituídos por outros, cada vez menos dispostos a ceder, e ele não conseguia ganhar posições. Terminou por ser, ele próprio, empurrado, e deu por si caminhando com as próprias pernas mas guiado pelos ombros e cotovelos dos outros, e acabou descrevendo um movimento circular, reconhecendo por fim a larga porta envidraçada. Conseguiu entrar no salão, agora não tão iluminado, embora o lustre permanecesse solidamente suspenso sobre a multidão. A massa de convidados parecia dirigir-se à entrada principal, e ele já perdera as esperanças de falar com a noiva. Reconheceu, alguns metros à sua frente, o suposto mordomo. Era mais alto que a média dos convidados, e estava sorridente, embora também precisasse se por na ponta dos pés, para enxergar o que se passava na frente da casa. Ele tentou alcançá-lo, mas os convidados, gravitando em torno do casal que provavelmente se dirigia para fora da mansão, empurraram-no para o pé da escada no lado direito do salão. Sentou-se num dos degraus, exausto. As doses que tomara já faziam efeito, mas sua cabeça não estava excessivamente confusa. Procurava, agora, ocupá-la com alguma coisa, algum fiapo de pensamento, mas o único que lhe ocorreu foi que perdera o lançamento do buquê da noiva.
Uma mulher passou por ele.
"Quem pegou o buquê?"
"O que?"
"Quem pegou o buquê?"
Mas ela já não o escutava mais, tragada pela força gravitacional da massa que abarrotava o salão. Alguns convidados vieram, involuntariamente, na direção dele, na tentativa de penetrar a aglomeração, e sendo automaticamente repelidos por ela. Faziam então, um movimento semicircular, tentando aqui e ali voltar ao seio da massa que se comprimia em direção à porta de entrada.
"Quem pegou o buquê?"
Então ele se levantou, deu as costas à multidão, e subiu alguns degraus. Parou, mas alguma coisa parecia dizer-lhe que subisse. Afinal, não havia motivo para ficar parado ali, já que estavam todos em movimento naquela casa. Ele prosseguiu, subindo o lance de escada, levado, talvez, pela idéia de encontrar uma nova saída, desconhecida de todos, inclusive os moradores da mansão. Seria uma ação meritória, pensou ele, e riu, voltando-se e olhando, ainda uma vez, para a multidão que aos poucos esvaziava o salão.
Penetrou o corredor do pavimento superior, e seguiu em direção à extremidade oposta, cuja parede continha um vitral. Não havia iluminação suficiente para que ele lhe distinguisse o motivo, e então ele prosseguiu.
Todas as portas do corredor estavam fechadas, exceto a última do lado direito, contígua ao vitral, que estava entreaberta. Ainda havia muito o que fazer: cumprimentar os pais da noiva, beber ainda alguma coisa, afinal não era sempre que ele podia beber algo que não fosse cerveja, enfim, aproveitar um pouco mais daquela opulência. Ao mesmo tempo, cumprimentar os pais da noiva parecia-lhe cada vez mais uma cerimônia inútil e embaraçosa. Ele mal os conhecia, e à noiva basicamente no sentido bíblico da palavra, e, diabos, por que motivo teria ela mandado o convite? Por algum motivo o casamento e a recepção foram desagradáveis ao pai dela; será que ele gostaria de ser cumprimentado por isso, e por alguém a quem não conhecia? E a mãe da noiva, que não fora mencionada uma vez sequer?
Após alguns minutos imerso nessas reflexões, ao pé do vitral - uma pietá - ele aproximou-se da porta entreaberta. Abriu-a lentamente, temendo algum rangido, mas a porta cedia sem fazer ruído algum. Os únicos sons, que vinham do interior do aposento, eram gemidos e soluços, tão sinceros e cortantes que o fizeram sentir-se lúcido de súbito, como se fosse uma sensação há muito não experimentada.
O rapaz estava sentado numa espécie de poltrona almofadada, com o corpo curvado para a frente, as pernas abertas, os braços caídos de cada lado do corpo, a mão direita segurando uma garrafa num ângulo de 45º. Os gemidos e soluços eventualmente faziam um espasmo percorrer-lhe o corpo, mas levemente, sem força para tirá-lo do lugar, nem alterar a posição prostrada, apesar do equilíbrio precário que a poltrona oferecia. O rapaz não percebeu a presença dele, e ele, com o corpo cosido à porta, esgueirou-se para dentro, esquadrinhando lentamente o imenso aposento.
Os soluços prosseguiam, em ritmo desigual. Não alteravam a posição do rapaz, e não pareciam estar próximos do fim. Ele sentiu-se inapelavelmente comovido, como se fosse uma sensação exclusiva, e novamente sem fazer ruído algum, esgueirou-se para fora do quarto. Enquanto se afastava, os gemidos e soluços prosseguiam, mas continuavam incapazes de comover quem quer que fosse, apenas ele. Prosseguiam, intermitentes e dolorosos, dentro do quarto, incapazes de tirar o rapaz do lugar, ou alterar-lhe a posição, nem a do homem suspenso um metro e meio acima do chão, que parecia velar, de cabeça baixa, o filho tão destruído quanto ele.

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