terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Os Velhos Olhos Castanhos

OS VELHOS OLHOS CASTANHOS No meio do corredor, no lado oposto ao vão das escadas, havia uma entrada que levava ao hall de quatro apartamentos, fora do alcance do meu olho mágico. Eu não conhecia bem as pessoas que moravam lá, com exceção de uma senhora, que costumava incomodar minha mãe, perguntando por que o irmão mais novo dela quase não a visitava, insinuando estar muito interessada em entrar para a nossa família. Era viúva, creio eu. Minha mãe era filha única, e esse irmão mais novo vinha a ser ninguém menos que meu pai. Assim fica claro que a separação tivera um efeito bem visível em minha mãe, e absolutamente nenhum sobre o meu pai. Creio que esse é o padrão, porque minha mãe provavelmente nunca mais sequer olhou para algum outro homem, enquanto que meu pai a trocou por uma garota apenas uns poucos anos mais velha que eu mesmo. Eu a conheci, alguns anos depois. Não era má pessoa. Uma vez estávamos conversando, depois da separação deles próprios, e ela me perguntou: "Você quer saber a verdade?" "Que verdade?", eu respondi. "A verdade", ela disse, "Sobre eu e seu pai. Quer dizer, como as coisas aconteceram. Como a gente se conheceu, e tudo o mais." Fosse eu mais velho, e teria percebido que ela estava querendo fazer confidências, por algum motivo que ainda hoje não alcanço. Mas eu disse, sorrindo amistosamente, "Não. Se você quiser contar, eu escuto, mas não faço questão. Essas histórias são sempre as mesmas, não são? Muda o nome das pessoas, o nome dos lugares, mas as histórias são sempre as mesmas, não são?"
Bom, mas voltando ao ponto. Já era tarde, eu imagino, e passando pela porta casualmente, lancei um rápido olhar pelo olho mágico. Uma mulher vinha do hall dos elevadores. Na metade do corredor, ela parou. Por um momento pensei que ela houvesse visto o vulto de meus pés sob a porta, pois algumas vezes o capacho ficava fora do lugar, e a sombra podia ser vista se a luz da sala estivesse acesa. Mas não era o caso. Ela apenas parou, e se inclinou em direção à parede, repousando a cabeça sobre o antebraço. Levou a mão aos olhos, como se enxugasse lágrimas. Estava chorando, mesmo. Não sei bem porque, mas atravessei a sala, peguei o jornal daquele dia, que estava no chão, dobrei-o, abri a porta, e fui jogá-lo na lixeira. Ela não me viu, quando passei por ela, nem mudou de posição e atitude. Voltando da lixeira, parei ao lado dela.
"Boa noite", eu disse. "Posso ajudar em alguma coisa?"
Ela olhou para mim, então, mas não disse nada. Parecia muito com uma professora minha, do ginásio, professora de português, que me deixara enfeitiçado e febril, durante um certo ano letivo. Mais tarde compreendi que não fora o único da minha classe a ficar naquele estado, naquele ano letivo. A febre chegou ao pico num dia em que ela, por alguma razão então inteiramente indecifrável para nós, tendo durante toda a aula se comportado de um modo estranho, diferente, falando palavrões e sorrindo o tempo todo, interrompeu a lição para mostrar a todos fotos de um fim de semana na região dos lagos, em que ela aparecia diversas vezes de biquini. Mas a classe veio abaixo mesmo quando ela, de volta ao quadro negro, de costas para nós, inclinou o corpo levemente, quase se agachando, e puxou a calcinha, para ajustá-la melhor sob a calça justa.
"Aconteceu alguma coisa?"
"Nada", ela disse, sorrindo timidamente.
Eu sorri, também.
"Não parece", eu disse.
"Eu sei. Meu aspecto não deve ser dos melhores. Mas eu estou bem."
"Tem certeza?"
"Desculpe", ela disse, "Mas eu não quero incomodar você com os meus problemas."
A transcrição correta dessa frase seria, provavelmente, 'Não enche o saco, porra, que eu não vou discutir meus problemas aqui, a essa hora, com um moleque do seu tamanho', ou algo parecido. Mas eu não suspeitava disso, na ocasião. Eu disse:
"Não é incômodo nenhum. Se eu puder fazer alguma coisa por você, é só dizer. Você não parece legal."
Ela olhou para mim, e sorriu, desafiadora:
"Você tem aí..." e mencionou uma certa quantia em dinheiro.
"Tenho", eu disse.
Ela provavelmente não percebera, pelo estado de confusão em que se encontrava, que suas frases para mim tinham valor de face. Mas caiu em si rapidamente, e sorriu:
"Você tá brincando comigo. Esquece. Não é nada disso. Eu estava só brincando com você. Não é de dinheiro que eu preciso, agora."
Fez menção de que continuaria falando, mas parou.
"Jesus!", ela disse, rindo de si mesma. "Olhe só prá mim! A essa hora, me debulhando em lágrimas, falando com um garoto...quantos anos você tem, aliás? E como é que você pode ser tão atirado?"
Assim, havia duas perguntas a responder, ambas complicadas. Quantos anos eu tinha? Parecia que a resposta dependia sempre de quem perguntava. Uma vez, uns dois anos antes, quando eu estava prestes a mudar, presumivelmente de forma temporária, para São Paulo, eu fora ao cinema com meu primo e uns amigos, ver um filme proibido para menores de 14 anos. Eu tinha 14, e estava com minha carteira de estudante verdadeira, embora estivesse certo de que não precisaria mostrá-la, mas o bilheteiro, após examinar judiciosamente o meu rosto, pediu para vê-la. Depois de alguns segundos ocupado com cálculos aritméticos que lhe fizeram franzir o cenho algumas vezes. de forma singularmente assimétrica, o sujeito sentenciou que eu não tinha idade suficiente para ver aquele filme. Era Car Wash, se bem me lembro. Fiquei arrasado, embora afetasse indiferença, chegando a declarar que não estava mesmo com vontade de ver o filme, o que era uma mentira deslavada. Mas minha reação era devida, na verdade, ao fato de que alguém pudesse me olhar e chegar à conclusão que eu não tinha a idade que eu tinha realmente, o que é uma das piores coisas que podem acontecer com alguém dessa idade. No fim das contas, um de meus amigos, que aparentava ser mais velho do que na verdade era, fez uma pequena correção nas contas do sujeito, entrecortada de risos e deboches juvenis, e eu pude afinal ver o filme, e o trauma decorrente da situação ocupou lugar central em minha vida por. digamos, vinte minutos - o tempo de projeção do cine-jornal e dos trailers, creio eu - quando se esgotou a capacidade de meus amigos para criar piadas e gracinhas em torno do tema.
Assim, eu tinha que decidir quantos anos eu tinha, diante daquela interlocutora, e naquela situação. A outra pergunta estava totalmente além da minha capacidade de resposta. De fato, eu jamais imaginara que alguém, um dia, pudesse me julgar atirado. Aquilo era uma novidade, e não havia como digeri-la assim, de bate-pronto. O que me levava a uma indagação própria, como eu podia ter sido tão atirado, a ponto de me meter numa situação como aquela?
"Deixa minha idade pra lá", eu disse. "Eu tenho algum aí dentro. Não sei se tenho isso tudo aí que voce falou, mas a gente pode ver isso."
"Olhe", ela disse, "eu agradeço muito a sua boa vontade...na verdade eu não estou precisando de dinheiro. Eu só falei aquilo pra assustar você, e encurtar nossa conversa, mas..."
Olhou para mim:
"Não é que eu queira encurtar nossa conversa, por sua causa, entenda. É que eu...eu não estou em..."
Estava prestes a chorar, novamente.
"Tudo bem", eu disse. "Eu é que lhe devo desculpas, por ser assim tão..."
Ela me interrompeu:
"Você é mesmo um cavalheiro."
"Olhe", eu disse, "Eu não sou atirado. Talvez eu não possa lhe ajudar com a grana, mas posso fazer alguma coisa por você, se você precisar."
"Atirado do mesmo jeito", ela disse, agora sorrindo. "Mas por que você quer tanto me ajudar? Você não me conhece, eu sou mais velha que você..."
Eu sorri, também.
"Eu sou assim, mesmo, eu acho. É a minha natureza. E além do que você é tão linda."
Ela ainda sorria. "É muito bacana ouvir isso."
Ela estava me olhando, embora talvez enexergasse alguma outra pessoa, ou coisa. Alguém de quem esperasse ouvir aquelas coisas, ou ao menos aquele tom de voz. Pu talvez estivesse pensando, 'como é que um garoto desses pode saber alguma coisa sobre a natureza humana, mesmo a própria?' Pelo menos, era isso que eu pensava, na hora. Eu costumava recitar frases, lidas em livros ou ouvidas em filmes. Eu sempre fazia isso - acabara de fazer - confiante nas estatísticas que fazem do povo brasileiro um dos que menos lêem livros neste mundo. Ela certamente figurava nessas estatísticas ao lado da maioria, portanto eu tinha uma espécie de certeza juvenil de que ela não reconheceria minhas melhores frases.
"Aposto que você ouve isso o tempo todo."
"Não, não mesmo. Aí é que você se engana. Costumava ouvir, até um tempo atrás, mas agora não."
"Por que?"
"É uma história triste, e longa. Você não ia querer ouvir."
"Bom, eu acho que a maioria das histórias são assim, tristes e longas."
Ela sorriu. Ficamos em silêncio por alguns instantes. Ela então fez um gesto vago, de quem se prepara para sair de cena.
"Foi legal conversar com você."
"De qualquer forma, se você precisar de alguma coisa, eu moro ali. Por que você não aparece?"
"Você mora sozinho?"
"Não. Com a minha mãe e meu irmão."
"Eles estão em casa?"
"Meu irmão, não."
"Sua mãe deve estar dormindo."
"É provável. Ou talvez esteja aqui, no 3º, com a dona Mira. Elas se fazem companhia. Você conhece ela?"
"Não."
Me virei, e ela também.
"Você vai aparecer?", eu disse, voltando-me para ela.
"Quem sabe?", ela disse, e fez um aceno de adeus.
Assim, uma nova amizade feminina nascera, bem mais fácil que a maioria das precedentes. Eu já havia lido e ouvido sobre encontros casuais mais prolongados que um mero encontrão na rua, mas nunca pensei que pudessem ser tão banais. Fiquei um bom tempo pensando nela, tentando adivinhar seu nome, que eu não perguntara, e depois chamando-a pelo nome da professora de português com quem se parecia, Vera.
Na manhã seguinte acordei ainda pensando nela. Ela havia dito que não era de dinheiro que ela estava precisando, mas alguma coisa próxima disso a perturbava. Eu procurava me convencer que era dinheiro. Pelo menos era algo tangível, fácil de entender. Abri minha carteira, que eu guardava escondida por causa de meu irmão mais velho, que gostava de levar o máximo de dinheiro possível, para gastar nos fins-de-semana, com os amigos, que eram quase todos ricos. Uma vez ou outra ele deixava bilhetinhos explicativos, supostamente espirituosos, no lugar do dinheiro, para se justificar e aplacar minha raiva, mas, para lhe fazer justiça, ele sempre me pagou os empréstimos não autorizados, que era como ele se referia ao roubo. De qualquer forma, não havia nenhuma fortuna na minha carteira, só alguns trocados, num total muito distante da quantia que ela mencionara. Não havia como arranjar mais. Eu não tinha traduções a fazer, meu pai, como de hábito, andava sumido e não dava notícias, e o dinheiro que meu irmão do meio mandava era estritamente controlado por minha mãe, e minha cara de pau não era dura o suficiente para que eu o incomodasse com uma história daquela natureza.
A campainha soou. Desanimado como eu estava, eu não queria olhar na cara de ninguém, mas uma idéia súbita me fez mudar de ânimo, e eu saí correndo para abrir a porta.
Mas quem estava lá ainda tinha cara de sono, olhar distante e fala pausada.
"E aí?", ele disse.
"Diga", eu disse, à semelhança dele.
O cachorro dele, um pequinês, entrou no apartamento, como sempre fazia. Fazia outras coisas por lá, também, às vezes. Valmar mandou que ele desse meia-volta, e o animal parou, olhando o dono e balançando o rabo. Valmar o ameaçou, e ele bateu em retirada.
"Como é que tá tua mãe?"
"Tá bem."
"E o teu irmão? Tem tempo que eu não vejo ele," ele disse, como se estivesse muito interessado na minha família.
De súbito, eu tive uma idéia.
"Como é que vão os negócios?"
"Bem", ele disse, me olhando, "Aliás, foi por isso que eu vim aqui."
"Foi?"
"Foi. Olha só, eu peguei umas mercadorias ontem, e tô sem espaço prá guardar tudo lá em casa. Você se importa se eu..."
Ele nunca mudava a desculpa. Era sempre a falta de espaço.
Ele parara de falar.
"Que foi? Alguma coisa errada?"
"Não."
Ele deu um passo para trás.
"É só por uns dias. Peraí que eu já volto."
"Valmar", eu disse.
Ele voltou-se.
"Que foi?"
"É que..."
"Fala, pô!"
O cachorro tornou a entrar no apartamento, mas Valmar não notou.
"Olha, eu conheço teu negócio. Eu sei que..."
"Eu sei que você sabe. E daí?"
"Minha mãe não sabe. E eu não sei o que ela vai fazer se descobrir que tu guarda muamba aqui."
"Ela não precisa saber."
"Mas ela pode descobrir."
"Mas essa porra não fica escondida?"
"Fica , mas ela pode descobrir. E eu não sei qual vai ser a reação dela. Ela pode não gostar. Ela pode vir prá cima de mim."
"E?"
"E aí...e aí que eu acho que tu me deve alguma coisa, pelos riscos que eu tô correndo."
"Eu te devo alguma coisa...pelos riscos que você tá correndo?"
Fiz que sim com a cabeça. Imaginei que ele ficaria irritado, mas ele estava apenas surpreso, e sorriu.
"Bom, no fundo você tem razão. Eu te devo alguma coisa, mesmo. O que você quer? Na verdade eu mexo com algumas coisas que eu acho que não te interessam, e vou mexer com outras que vão te interessar ainda menos, mas eu..."
"Eu não tô falando desse tipo de coisa."
"E tá falando do quê, então?"
"Eu tô falando de dinheiro."
Ele abriu a boca, e depois assobiou, baixinho.
"Ah, claro...entendi. Tá falando de dinheiro."
"Claro."
"Bem", ele disse, rindo, "bem vindo ao mundo dos negócios. Quantos anos você tem, mesmo?"
Nenhum adulto neste mundo, creio eu, consegue imaginar o quanto essa pergunta é idiota. Eles provavelmente a ouviram, na adolescência, e era um consolo imaginar que eu também me esqueceria dela, quando me tornasse adulto.
"Minha idade não interessa. Quanto tu pode me pagar?"
"Quanto você quer?"
"O máximo que tu puder pagar."
Ele deu uma risada: "Porra!"
Um odor característico invadiu o apartamento, e Valmar soltou alguns palavrões.
"Você tem trabalho, agora", eu disse. "Depois a gente conversa melhor."
Ele pegou o cachorro, e olhou para mim.
"Você tá certo. Eu realmente te devo alguma coisa. Mas não vai ficar puto comigo se eu arrumar outro lugar prá guardar as minhas coisas."
"Aqui no prédio? Onde?"
Ele sorriu.
"Não precisa ficar puto comigo, também. Eu não sou nenhum mercenário."
"Eu sei. Mas tá me enfiando a faca, do mesmo jeito."
"É que eu tô precisando de algum, agora."
"Só por agora?"
"Não, não."
Ele riu.
"Eu não achei que fosse. Bom, eu já volto, e aí a gente acerta isso."
"Não vai bater no cachorro", eu disse.
Na manhã seguinte fiquei em suspense, esperando que ela aparecesse. Depois, pensando melhor, achei que ela não apareceria assim, tão rapidamente. Depois, pensando ainda melhor, achei que ela sequer apareceria, na verdade. Fui para a rua. Eu estava de férias, e sem vontade de ver nenhum dos meus amigos. Mas encontrei alguém.
"Tá indo prá onde, cara?", disse Dênis, com seu jeito despachado.
"Lugar nenhum", eu disse.
''Vem aqui comigo, então", ele disse, "que eu vou te mostrar a mulher que eu tô comendo."
Assim, parecia que estávamos a caminho do açougue, mas ele estava me levando ao Carambola. Quando chegamos lá, quem o esperava era Rosângela, e não um pedaço de carne pendurado num gancho. Tive a impressão de que a expressão do rosto dela mudou, ao me ver.
''Você por aqui?', ela disse, sorrindo amistosamente. Dei de ombros.
"Vocês se conhecem?", disse Dênis. E, depois de um momento: "Claro, porra! A
gente mora tudo no mesmo lugar."
Ele se inclinou para beijá-la, mas eu tive a impressão de que ela não retribuiu o beijo.
"Gonçalo tá por aí?", perguntou ele, em voz baixa.
Rosângela olhou para ele, de um jeito significativo.
"Não."
"Ótimo", disse Dênis. ''Bebe alguma coisa?" Isso era comigo.
"Não."
Alguém acenou para Dênis, do outro lado do balcão.
"Peraí que eu já volto."
Ficamos a sós, eu e Rosângela. Mas, por algum motivo, eu não estava com vontade de
conversar com ela.
"É engraçado, não é?"
"O que?"
"A gente mora no mesmo prédio, e se vê tão pouco."
"É", eu disse.
"Tem visto teu irmão?"
"Não", eu disse. "Quem é Gonçalo?"
"O dono desse pé-sujo."
"Ah, sei."
"Você tá legal?"
"Tô", eu disse.
"Não parece", ela disse, sorrindo.
"Você e o Dênis tão namorando?"
"Não", ela disse. "A gente sai, de vez em quando."
"Ah, eu sei."
"Não tem visto mesmo, teu irmão?"
"Não", eu disse. "Ele vai lá em casa, às vezes, mas ultimamente não tem aparecido."
"Quando ele vai lá?"
"Não tem dia certo, não."
"Não", ela disse, "eu digo assim, a que horas ele costuma aparecer por lá, quando ele vai? De dia ou de noite?"
"De noite", eu disse.
Saí dali. Já havia visto o que Dênis queria que eu visse. Imagino que ele não conseguia ficar sozinho, e qualquer conhecido, ou amigo, que encontrava na rua, ele chamava para ir com ele, aqui ou ali, não importava. Tinha mesmo a mania de ficar parado na portaria do
prédio, conversando com o porteiro, esperando que algum conhecido descesse. Eu não sabia por que ficar sozinho era tão terrível. Dênis era mais velho que eu, e se dava mais com meus irmãos, mas isso não tinha importância para ele, na hora de conseguir companhia. Um dos caras com quem ele ficara conversando do outro lado do balcão do Carambola era Valmar.
Eu não tinha para onde ir. Na verdade, nem lembrava mais por que havia saído de casa. Pensei em ir a algum dos lugares onde sabia que encontraria amigos, mas não estava realmente disposto a jogar conversa fora. Havia um certo estranhamento entre nós, talvez porque eu havia passado um ano e meio em São Paulo, de onde voltara havia uns poucos meses, mas já estava passando. Não me encaravam mais como se eu fosse um paulista. No primeiro dia em que nos encontramos, logo após a minha volta, caiu um verdadeiro dilúvio no Rio, e eles ficaram me olhando como se eu fosse o culpado.
Voltei para casa. Antes de sair do elevador, eu já ouvia uma voz exaltada ecoando no corredor. Quando saí, um homem barrigudo, de alpercatas, blusa semi-desabotoada, com barba por fazer e lápis atravessado na orelha, conversava, ou melhor, esbravejava com dona Dotinha, mãe de Dênis. Uma das portas do corredor contíguo estava entreaberta, mas nenhum dos dois pareciam ter percebido.
"Dona Dorinha", dizia o homem, "eu quero uma definição. É só isso que eu quero, uma defmição da senhora. Porque o Dênis meteu a senhora na conversa. É só por isso que eu estou aqui. Eu não queria incomodar a senhora, que isso não é do meu feitio, mas não teve outro jeito. A senhora vai ou não vai assumir a dívida do rapaz? A senhora sabe, eu sou um comerciante, eu vivo disso. Se eu quisesse dar comida e bebida de graça, eu abtia uma casa de caridade, e não um bar. Olhe aqui ... "
Então ele retirou do bolso diversos papéis amarrotados e engordurados.
" ... as contas do seu filho. Desde o dia ... "
Manuseava os papéis, nervoso, e deixou cair alguns deles.
" ... olhe aqui. Desde o dia 1° do mês passado que ele está pendurando as contas dele. E não é pouca coisa não, viu? E ainda paga para os amigos que ele leva lá, e também mulheres ... dona Dorinha, a senhora precisa dar um jeito no Dênis, ele nunca foi disso, nunca foi de pendurar conta, mas depois que o pai dele morreu ele deu prá isso, e eu não sou dono de casa de caridade, nem de sopão, não senhora, eu sou um comerciante, eu vivo disso, eu não posso segurar uma situação dessa por muito tempo, pendurando conta de um rapaz que não trabalha, não faz nada! Eu quero uma definição da senhora, porque foi ele que me mandou vir aqui. Aliás, ele nem me mandou vir aqui, ele mandou recado. E eu quero saber, já, se senhora vai, ou se a senhora não vai assumir as contas desse rapaz. Porque eu tenho que receber, eu sou comerciante e vivo disso, e não posso sustentar uma situação dessa por muito tempo. Eu não estou aqui para sustentar burro a pão de ló!"
"O senhor se acalme, não faça escândalo ... "
"Eu não estou fazendo escândalo!", disse o homem, exaltado. "Eu só estou correndo atrás dos meus direitos! Eu só quero uma definição da senhora, só isso, uma definição! Porque se a senhora me disser aqui, agora, que não assume essa dívida, eu vou ter que usar outros meios para fazer ele me pagar o que me deve!"
"O senhor faça o favor de voltar amanhã. Eu vou falar com o Dênis, hoje, e vou saber dele o que está acontecendo. O senhor, agora, por favor. .. "
O homem, então, se deu conta da minha presença. Parecia mais apaziguado.
"Dona Dorinha, a senhora sabe, eu não sou homem de fazer escândalo na porta dos outros, nem gosto que façam na minha! Mas a senhora sabe, eu sou um comerciante, eu não posso me dar ao luxo de ... "
"Eu sei, eu sei", ela disse, fazendo menção de fechar a porta do apartamento. "O senhor venha aqui amanhã, pela tardinha, que nós vamos resolver isso. Por favor, agora o
senhor queira se retirar, sim?"
O homem me olhou, olhou para dona Dorinha, guardou os papéis no bolso, e disse:
"Então está bem, até amanhã, então. Passe bem."
Entrou no elevador e foi embora. Passei por dona Dorinha, que voltou-se rapidamente para o interior do apartamento, me evitando. Quando passei pela porta que estava entreaberta, esta se abriu inteiramente e de lá saiu ninguém menos que Dênis, seguido pela mulher que vivia com o Freitas.
"Tu estava aí o tempo todo?"
"Porra, que merda", disse Dênis, com o rosto vermelho, sem responder minha pergunta. "Prá que esse vagabundo tinha que vir aqui falar com a minha mãe desse jeito?"
"Ele não te viu não?"
"Porra, quando eu fui ao Carambola, o Valmar me chamou e disse que o Gonçalo vinha prá cá, tomar satisfação comigo. Eu subi pela escada, e vi o sacana na porta da minha mãe. Quando ele começou a discutir com a minha mãe, ela - e olhou em direção à mulher do Freitas - abriu a porta para ver o que era e eu aproveitei e entrei aqui."
Voltou-se para o interior do apartamento e fez um sinal de positivo para o Freitas, que estava sentado no sofá, com um copo de uísque na mão, assistindo televisão. Fiz um aceno para ele, também. A mulher já havia entrado no interior do apartamento. Dênis foi para casa, e quando eu ia fechar a porta do apartamento do Freitas, ele me convidou a entrar. Eu entrei, sem fechar a porta.
"Que confusão foi essa, meu jovem?"
"Eu não sei", eu disse. "Quando eu cheguei o cara já tava indo embora. Acho que o Dênis andou pendurando umas contas no bar desse cara, e ele veio cobrar. É o Carambola, ali perto do Roxy."
"Eu conheço o Carambola", disse o Freitas. "Aposto que isso é problema com
mulher. Quem faz o homem gastar mais do que ganha é a mulher, pode estar certo disso."
Enquanto falava, indicava com o dedo o interior do próprio apartamento. Eu ri.
"Mas o Dênis não ganha nada", eu disse. "Esse é o problema."
"É verdade", disse o Freitas. "Quer beber alguma coisa?"
"Não, obrigado. Eu já tô indo prá casa."
''Pergunte ao Dênis", ele disse. ''Pergunte ao Dênis se não é mulher que está fazendo com que ele gaste demais. Eu já disse a vocês, rapazes, quando tiverem qualquer problema com mulher, falem comigo, me procurem, porque eu tenho cancha nesse assunto."
Ainda fiquei um pouco por lá, ouvindo mais alguns dos refrões dele, antes que ele me liberasse. Em casa, fui para o meu quarto, e me deitei, olhando para o teto, procurando ver figuras nos relevos da pintura irregular, pensando em uma ou outra coisa, e estava olhando para o teto, pensando em uma ou outra coisa, quando minha mãe apareceu no quarto, com um recado para mim.
"Desde quando tu conheces essa fulana que mora no 406?"
''Por que?"
"Ela esteve aqui, procurando por ti."
"Quando?", eu disse, excitado, saltando da cama.
"Desde quando tu conheces ela?"
"Ah, mãe, eu não sei há quanto tempo eu conheço ela. O que ela queria?"
"Ela pediu que tu fosses lá, no apartamento dela."
"Quando, agora?"
"A qualquer hora. Ela disse que vai ficar em casa, hoje."
Dei as costas à minha mãe e fui me arrumar.
"O quê que tu tens com essa mulher? Não vai te envolver com mulher mais velha, estás ouvindo? Tu ainda estás muito novo prá ficares te envolvendo com mulheres maduras ... "
Ela continuou falando, creio eu, mas eu não lhe dava mais ouvidos. Estava muito excitado me penteando, escovando os dentes, examinando as unhas, e me olhando no espelho. Então, de repente, enquanto abotoava a camisa diante do espelho, achei que aqueles preparativos todos eram estúpidos. Se ela havia me procurado, devia ser por algum motivo mais ou menos idiota, nunca pelo motivo que me excitava daquela maneira despropositada, embora, no primeiro momento, parecesse o único plausível.
Quando saí de casa, minha mãe notou que meu estado de espírito se alterara, além da roupa, que eu trocara por uma combinação informal de calça jeans desbotada e camisa de malha. Não havia mais qualquer excitação, e meu aspecto devia ser mais ou menos o mesmo de alguém que se dirigisse ao banheiro, para satisfação de melancólicas necessidades.
"Que cara é essa, menino? Fala com a tua mãe, menino!"
Saí, e fui ao apartamento dela. Fiquei alguns segundos parado diante da porta,
esperando que algo acontecesse, mas para tanto era necessário que eu tocasse a campainha.
Ela abriu a porta, sorrindo, e me convidou a entrar.
''Você foi me procurar?"
"Fui", ela disse. "Sua mãe me atendeu. Ela é muito simpática, muito atenciosa, viu?
Deve ser por isso que você é assim, tão cavalheiro. Você teve berço."
Fiquei meio sem jeito, como sempre ficava, quando me elogiavam, e evitei sorrir, para não piorar as coisas.
"Você deve ter puxado a ela", ela disse, sorrindo novamente. "Sente-se", continuou
ela, apontando para o sofá.
Sentei-me. Me senti desconfortável, e não conseguia pensar em nada para dizer.
"Tá tudo bem com você?"
"Tá", eu disse.
"Não parece", ela disse, com bastante simpatia, quase maternal.
Assim começara nossa conversa, dois dias antes, mas agora os papéis pareciam invertidos.
"Por que?"
"Naquele outro dia em que nos encontramos, você estava muito mais falante. E hoje
está tão quieto e calado. O que houve com você?"
"Nada", eu disse. "Acho que eu sou assim, mesmo. Maníaco-depressivo."
"Credo!", ela disse, mas logo depois sorriu, pois eu também sorrira.
"Você tem um belo sorriso", ela disse, outra frase a que eu já me acostumara, quando
conversava com garotas.
"Já me disseram isso, antes."
"Eu tenho certeza que sim", ela disse, com alguma malícia, olhando para mim.
Era desconcertante não saber ao certo o motivo da mudança momentânea em seu tom de voz, e então eu disse, rapidamente:
"Bom, é brincadeira. Eu não sou maníaco-depressivo, não. Mas é melhor deixar as
janelas fechadas."
"Não entendi", ela disse.
"Ah, deixa prá lá."
Ficamos em silêncio. Ela me observava, talvez se indagando se eu era a mesma pessoa que a havia abordado no corredor, dois dias antes.
"Como eu estava dizendo, você tem um sorriso tão bonito. Mas parece diferente, hoje."
Eu não conseguia pensar em nada para dizer, e ela, aparentemente, não conseguia sair daquele assunto. Pensei em levantar e ir embora. Mas ainda estava sentado no sofá quando a olhei nos olhos e disse:
"Não, falando sério, eu tô legal. Tá tudo bem comigo. É que eu sou meio esquisito,
mesmo."
"Mas não chega a ser maníaco-depressivo, não é?"
"Não, não. Esquisito, só, já basta."
Ela riu.
"Geralmente, as pessoas esquisitas são as últimas a admitir que são esquisitas."
"Talvez eu esteja um pouco acima da média."
Ela riu novamente. Que conversa! Tive a impressão, naquele momento, que ela tinha
algo importante a dizer, mas não sabia como começar.
"Você se importa se eu fumar?"
"Não."
Ela pegou o maço de cigarros que estava sobre a mesa de centro. "Se importa se eu beber alguma coisa, também?"
"Não. E se quiser me oferecer alguma coisa, eu também não me importo."
Ela riu, mais descontraída. Acendeu o cigarro, e soltou uma baforada.
"Mas você já bebe? Você não é ainda muito novo prá isso, não? Olhe, eu sei que vocês, nessa idade, não gostam muito dessa conversa de já ter idade suficiente para certas coisas, mas é que eu... "
Ela parou de falar, de repente, efeito provável da expressão de absoluto tédio em meu rosto. Tornou a rir, e disse:
"Ah, esquece isso. Eu vou tomar um pouco de uísque. Com soda, e gelo. Como meu
ex me ensinou. Você quer assim?"
"Soda? Limonada?"
"Claro. Você quer assim?"
"Não, eu prefiro puro."
Eu nunca bebera uísque antes, mas, como se diz, para tudo há uma primeira vez.
"Vai beber cowboy? Puxa! Eu vou preparar."
Ela se levantou. No canto oposto da sala havia um pequeno bar. Olhei em tomo, o
apartamento era bem arrumado e aconchegante. O nosso fora alugado já mobiliado.
"Legal, o seu apartamento."
"É", ela disse, "eu sei .. É simples,mas aconchegante."
"Você mesma cuidou da decoração?"
"Claro. E o seu? Foi sua mãe que decorou?"
"Não. O nosso nós alugamos mobiliado."
"Ah, eu entendo. Chato isso, não?"
"Por que?"
"Eu quero dizer, para sua mãe. Ela fica sujeita ao gosto dos outros."
"Ou, nesse caso, ao mau-gosto dos outros."
"Puxa, é tão ruim assim?"
"Ah, mais ou menos. Eu não sei. Eu não entendo dessas coisas. Acho que o apartamento tá decorado num estilo ... como é que eu posso dizer? Um estilo clássico-grotesco."
Ela riu.
"Credo! Como é isso?"
"Qualquer dia você vai lá, e vê com seus próprios olhos." Ela não disse nada, limitando-se a sorrir.
"Você mora sozinha?"
"Moro."
"Eu entendo. Deve ser legal."
"Às vezes é", ela disse, vagamente. "Eu estou me divorciando, e fiquei com o apartamento."
"Eu entendo."
Ela estava de volta à sala. Trouxera-me um copo, apenas um terço cheio, com um
guardanapo de papel. O copo dela estava mais cheio que o meu. ''Você vai se embebedar?"
Ela me olhou, surpresa:
"O meu tem soda, e gelo."
"Ah sim, claro. Você disse que ia se servir assim."
Ela sentou-se, bem à minha frente. Ergueu o copo, num brinde. "À nossa", ela disse.
Eu sorri, e levantei o copo, sem tocar o dela. Depois do primeiro gole, ficamos em
silêncio.
"Essa lei do divórcio é coisa recente, não é?"
"Mais ou menos."
"Você deve ser uma das primeiras, então."
"Primeiras o que?"
"A se beneficiar da lei."
"Ah, não ... não mesmo. A lei já tem alguns anos. Já tem muito casal divorciado por aL"
"Eu imagino."
Pensei que estávamos prestes a iniciar uma nova rodada de silêncio, mas ela disse: ''Você ficou surpreso?"
"Surpreso?"
''Por eu ter procurado você?"
"Não", eu disse.
"Sua mãe falou alguma coisa?"
"Não."
Ela sorriu.
"Não mesmo?"
Eu sorri, também.
"Bom, ela estranhou um pouco."
"Eu imagino o que ela deve ter pensado. Eu sou provavelmente a pessoa mais velha
que algum dia já bateu na porta dela procurando o filho caçula dela. Você é o caçula?"
"Sou."
"Puxa! Eu acertei de primeira!" Sorriu, levantando o copo.
"Você não é velha", eu disse, depois de alguns segundos.
"Ah, muito obrigado. Eu quis dizer que ela não deve estar acostumada a ver você ser procurado por mulheres da minha idade."
"Eu sei", eu disse, curioso, pela primeira vez, a respeito da idade dela. Menos de trinta, com certeza, embora não fosse fácil estimar. E eu já sabia que era gafe perguntar a idade a uma mulher, então parei de pensar naquele assunto.
Ficamos em silêncio. Resolvi que ia contar quantas vezes aquilo aconteceria durante nossa conversa. Meu copo estava vazio. Ela o tomou da minha mão, e alguns segundos depois o trouxe de volta, e depois de um gole eu disse:
"Por que você está se divorciando?" Ela deu de ombros.
"Não deu certo."
"Você se casou muito jovem?"
"Muito", ela disse, olhando para mim. Repetiu: "Muito." E, depois de alguns segundos:
"Muito jovem. Inexperiente."
"Eu sei. Como eu."
"Você é casado?", ela disse, espantada.
"Não", eu disse, "eu quis dizer, inexperiente, como eu."
"Ah", ela disse, parecendo verdadeiramente aliviada. ''Você me deu um susto!" Ela pôs o copo na mesa, e ficou muito séria.
'''Você se lembra do que a gente conversou naquele dia, no corredor, aí fora?"
"Mais ou menos", eu disse.
"Puxa! Você já esqueceu?"
"Não, não, eu me lembro. Eu me lembro, sim." Ela sorriu, rapidamente.
"Você me disse que precisava de quanto, mesmo?"
Ela permaneceu calada, durante alguns segundos, passando o dedo pela borda do
copo.
"Não, esquece aquilo. Eu não preciso de dinheiro. Eu disse aquilo só para ... " Olhou para mim, séria, tensa.
"Não é esse o problema."
"Se eu puder fazer alguma coisa", eu disse.
Ela tomou a sorrir, embora permanecesse tensa.
"Eu acho tão bonitinho, quando você diz isso. Eu falei em dinheiro porque eu planejava fazer uma viagem, mas agora ... bem, depois eu vi que era inútil, tirar aquela história a limpo longe daqui. Não ia adiantar nada. Foi só uma idéia que me passou pela cabeça. O problema é aqui no Rio, mesmo. Bem perto daqui, prá dizer a verdade."
"Você ia viajar para onde?"
"São Paulo."
"Prá que?"
''Para ... conversar com uma pessoa. Tirar uma história a limpo." Falava pausadamente, agora.
"Conversar com uma pessoa, que soube, através de uma terceira pessoa, de uma coisa
horrível."
"Que coisa horrível?"
"Uma coisa chocante, horrível, deprimente ... "
Arregalei os olhos.
" ... sobre meu pai."
"Eu entendo."
"Uma notícia que me deixou arrasada, deprimida .. ."
"Foi por isso que você estava daquele jeito, no corredor, aquele dia?" Ela assentiu com a cabeça, lentamente.
"Mas que notícia foi essa?"
Ela se levantou, pegou meu copo, e dirigiu-se ao bar, para preparar uma segunda dose
para ela, e a terceira para mim.
"Eu vou por um pouco de soda para você também, viu?"
"Tudo bem."
"E duas pedrinhas de gelo também, tá bom?"
Fiz que sim, com a cabeça.
"Essa pessoa que eu ia visitar, em São Paulo," continuou ela, "é uma parente minha.
Minha prima. Ela me ligou, dizendo que uma amiga comum nossa tinha passado uns dias aqui, no Rio, em casa de uns parentes dela. É uma pessoa que eu já não vejo há alguns anos. Ficou hospedada aqui mesmo, em Copacabana, mas não sabia que eu também morava aqui. E essa amiga contou para minha prima que, na véspera de voltar para São Paulo, ela foi na Igreja de São Paulo Apóstolo, para assistir a missa. Você conhece ela?"
"A sua amiga? Não."
"Não", ela disse, rindo, e me entregou o copo. "A Igreja. A Igreja de São Paulo Apóstolo, você conhece?"
"Ah", eu disse, "claro. Eu conheço, Stm. Eu estudei naquele colégio, ao lado. O colégio é da Igreja."
"Ah, você estudou lá? Que legal."
Ficamos em silêncio. Comecei a lembrar alguns episódios daquela passagem de minha vida, mas as recordações pareciam fragmentadas, fugidias. Normalmente eram nítidas e inteiras.
Depois de mais alguns segundos de silêncio, ela repetiu, absorta:
"Que legal."
Falava ainda pausadamente, distante.
"Mas, como eu ia dizendo, essa amiga nossa foi lá, na Igreja, e assistiu a missa, no último dia antes de voltar para São Paulo. E, quando ela saiu da Igreja, quando ela descia as escadas, ela parou junto de um ... mendigo."
Ela levou a mão livre aos olhos, pressionando-os com força, com o polegar e o indicador.
"Ela parou junto dele, e abriu a bolsa para dar uns trocados a ele. E então o mendigo começou a falar, agradecendo. E continuou falando, e começou a falar sobre ele, e contar a história dele, e do que ele tinha sido antes de se tornar mendigo ... antes de ficar reduzido àquele estado."
Fez uma pausa. Parecia prestes a chorar. Eu sabia, porque já a tinha visto assim, antes. "Ele disse a ela que ... disse que já tinha sido gente, no passado, antes disso ... foi essa a expressão que ele usou, 'já tinha sido gente'. Disse que tinha sido advogado, teve família, filha ... disse que tinha tido uma filha. Enfim, contou uma história, com detalhes, que acabou deixando essa minha amiga intrigada."
Fez uma nova pausa. Não estava chorando.
"Ela acabou ficando intrigada ... porque a história dele ... a história, que o mendigo contou, era muito parecida com a história ... com a história da vida do meu pai."
Eu estava olhando para ela. Não só a voz parecia distante e pausada, mas a própria figura dela, à minha frente.
"A história do mendigo era a mesma história da vida do meu pai", ela repetiu,
novamente absorta. Depois olhou em minha direção:
"Quer mais?"
Estendi o copo para ela. Ela levantou e foi ao bar.
"Eu não vejo meu pai há mais de cinco anos. Ele era advogado. Depois que ele se separou de minha mãe, ele se manteve em contato conosco, mas não por muito tempo. Com o tempo não tivemos mais notícias dele. Uma vez ou outra um amigo, ou parente, dizia ter encontrado ele, e nos dava notícia."
Ela trouxe meu copo, e tornou a sentar-se à minha frente. No mesmo lugar, porém mais distante, dessa vez.
"Há uns dois anos, mais ou menos, uma amigo da nossa família, que mora em Recife, ligou para minha mãe. E disse que tinha uma notícia desagradável para nos dar, sobre o meu pai. Disse que meu pai tinha aparecido por lá, na casa dele, sem camisa, magro, sujo ... disse que não conseguiu, por mais que tentasse, descobrir como ele tinha chegado ali naquele estado tão ... deplorável. Mas que, de qualquer modo, como eles tinham sido muito amigos - meus pais moraram alguns anos em Recife, quando eu era bem pequena - ele não podia deixar meu pai naquela situação. Ele hospedou meu pai na casa dele, deu algumas roupas a ele, e prometeu arrumar um emprego para ele, compatível com o nível dele. Na época em que nós moramos lá, e fomos vizinhos dele, essa pessoa já era rica, e hoje deve estar mais rico ainda. No dia combinado, em que ele ia levar meu pai para uma entrevista, foram ao quarto onde ele estava alojado, e meu pai tinha sumido. Procuraram a casa inteira, na rua, mas ele tinha desaparecido, levando tudo que o amigo tinha dado, as roupas, e até algum dinheiro, ao que parece. Ele ficou sem saber o que fazer. Procurou, procurou, e nada. Então ele ligou para minha mãe, para contar o que tinha acontecido, disse que estava muito preocupado com meu pai, que tinha achado ele muito vago, evasivo, ausente. Isso tem uns dois anos, mais ou menos. Na época nós ficamos chocadas, mas, com o tempo acabamos esquecendo. E então aconteceu esse telefonema da minha prima. Aí eu pensei que o mundo ia acabar. Eu entrei em depressão. Eu queria ir a São Paulo, tirar a limpo essa história. Mas não era o caso, não valia a pena. Ir a São Paulo era apenas uma forma de não encarar o problema. Mas era aterrorizante pensar que tudo aquilo podia ser verdade, e imaginar que ele pudesse estar aqui, tão perto, e naquele estado ... eu não sei se ele sabe onde eu moro. Mas se soubesse, a história faria sentido, seria uma maneira de ficar perto. Eu sei que é uma história absurda, sem pé nem cabeça, e que eu não devia dar ouvidos a ela ... mas eu não consigo, entende? Eu não consigo tirar essa história da cabeça, por mais absurda que ela seja. Na verdade, eu fiquei totalmente desarvorada, sem saber o que fazer. Naquele dia que você me encontrou, aí fora, eu estava voltando da Igreja, mas quando eu cheguei lá, eu não tive coragem de procurar ... de procurar ele. Meu pai. Eu não tive coragem. Eu voltei correndo prá casa, naquele estado em que você me encontrou, lembra?"
"Claro", eu disse.
"Desde então, eu não paro de pensar msso. Eu fico pensando na hipótese desse
mendigo realmente ser ... "
Pôs o copo na mesa de centro. E segurou o rosto com as duas mãos. "Meu Deus, que horror!"
A voz saíra trêmula, e ela devia estar chorando, agora. Mas tudo continuava muito longe, a figura dela, a voz, o choro. Inclinei-me, na direção dela, mas ela estava à minha frente, e cheguei a roçar o rosto em seus cabelos:
"O que você vai fazer, agora?"
"Eu não sei, eu não sei ... "
Involuntariamente, eu balancei meu copo, e as sobras das pedrinhas de gelo em seu
interior tilintaram.
"Você quer mais? Tem certeza?"
"Claro", eu disse, alegremente.
Meio ausente, e certamente sem saber o que fazia, ela pegou meu copo e foi ao bar. De
repente, eu disse:
"Ei!"
"Sim?", ela disse, voltando-se para mim.
"Esse é o silêncio número qual?"
"Como?"
Eu ri.
"Ah, esquece."
Ela voltou, com os copos.
"Bom, quando eu fui procurar você, no seu apartamento, eu na verdade queria ... " Parou, e ficou me observando.
"Você está bem?"
"Eu estou ótimo. Você na verdade queria ... "
"Eu queria pedir a sua ajuda. Você tem tempo livre?"
"Acho que sim."
"Claro, na sua idade o que não falta prá gente é tempo. Eu queria que você ... eu queria que você fizesse uma coisa que eu não tive coragem para fazer."
"O que?"
"Eu queria que você fosse lá, na Igreja, saber se ... se aquele homem, se algum daqueles mendigos que ficam sempre por ali, é mesmo o meu pai. Você faz isso por mim?"
Fiquei olhando para ela, tentando reconstituir em minha mente a história que ela acabara de contar. Não era fácil. Desisti, sacudindo a cabeça de uma forma que a deve ter confundido, e disse:
"E o quê que eu ganho com isso?"
"O que?"
Percebi, vagamente, que havia dito algo errado, embora o tom glacial da voz dela me houvesse escapado totalmente.
"Não, quer dizer, não é isso. É que ... eu quis dizer ... "
Ela ficara, evidentemente, ofendida, e eu tinha um sentimento misto de remorso e tédio, por ter dito aquilo. Era também evidente que eu era a única pessoa no mundo a quem ela poderia pedir aquele favor.
"Não é isso ... ", eu continuava gaguejando.
Ela esperou. Como eu não dissesse mais nada, ela disse:
"Eu estou lhe pedindo um favor. Eu sei que você não tem obrigação de me fazer favor nenhum, e eu sei que estou abusando de você, mas ... "
"Não está, não."
" ... eu julguei que, depois do que você me disse, naquela noite, sobre me ajudar e tudo, eu podia lhe pedir isso. Mas eu não vou pagar você por isso, pois eu não acho que um favor como esse se pague assim. Um favor como esse não se faz em troca de pagamento. Vou ficar sua devedora, é claro, e vou ficar muito satisfeita se, um dia, eu puder lhe retribuir, de alguma forma."
"Claro", eu disse.
Ela se levantou, e foi ao interior do apartamento. Fiquei intrigado. Mas quando ela voltou, instantes depois, eu já esquecera que ela havia saído da sala. Trazia algo na mão. Após sentar-se novamente bem à minha frente, sem que eu conseguisse, apesar de ingentes esforços, precisar a distância exata, ela deu-me o que trazia na mão: um retrato.
"É seu pai?" .
"É", ela disse. "Essa foto é de 65."
"Tem quase vinte anos."
Era uma foto em preto e branco, já meio amarelada.
"Infelizmente eu não tenho fotos recentes dele. Mamãe deve ter, mas eu não tenho.
Ele tem cabelos e olhos castanhos, claros, assim como os seus. E é mais ou menos da sua altura."
A descrição não ajudava muito, e eu ainda não conseguira fIxar, com nitidez, o rosto no retrato.
"Você pode fazer isso por mim? Eu não tenho coragem. Eu só quero que você vá lá, e veja se algum desses mendigos se parece com meu pai. Você pode fazer isso, por mim? Me desculpe por estar incomodando você, mas eu não vou ter coragem de encarar meu pai nesse estado."
"Claro", eu disse, "mas ... "
"Mas?"
"E se for ele?"
Ela suspirou, voltou a ocultar o rosto entre as mãos, e, presumivelmente, chorar.
"E se for ele? Eu faço o que? Trago ele para cá?"
Ela se manteve imóvel, durante alguns segundos. Depois começou a soluçar, com
força.
"Ei", eu disse, "não fica assim, não."
"Me desculpe", ela disse, com a voz entrecortada. Levantei-me, e sentei ao lado dela.
"Não fica assim, não."
Sentindo a minha proximidade, ela se inclinou em minha direção, baixando a cabeça, chorando com o rosto próximo ao meu peito.
"Ei", eu disse, levantando e tentando levantá-la.
"Você se parece com uma professora minha, de português, do ginásio..."
"Ah", ela disse, não muito interessada.
"Não, é sério. Ela era linda."
Ela afastou os fios de cabelo que as lágrimas haviam grudado em seu rosto, e sorriu.
"Pára com isso, vai."
Enxuguei as lágrimas dela.
"É sério, você é igualzinha a ela. Eu era apaixonado por ela."
"Pára com isso."
"Bom, eu e mais uns trinta caras que tinha comigo, na sala."
Ela ainda sorria, agora um pouco preocupada. "Você está bem?"
"Eu? Eu tô ótimo!"
"Acho que eu te dei uísque demais."
"Não, não", eu disse.
"Não, falando sério, é melhor você ir para casa. Amanhã a gente conversa melhor. Tá bom?"
"Puxa, eu nunca me senti tão bem, mesmo sendo colocado prá fora de um lugar."
"Não, falando sério, para com isso. É melhor você ir. Amanhã a gente conversa melhor"
"Por que amanhã?"
"Porque hoje você está um pouco alegre demais."
"Alegre, eu? Eu sou um melancólico empedernido. Alegria, alegria!"
Não me lembro com exatidão o que se passou depois desta exortação, mas creio vagamente que tentei pegá-la nos braços, para dançar, ou coisa parecida. Segurei suas mãos, e cheguei a ensaiar alguns passos. Eu não sei dançar, e o resto de equilíbrio que eu ainda tinha deu o final ali. Ela conduziu-me para fora do apartamento, com delicadeza, e sob protestos. O mundo parecia meio inclinado, e por um momento acreditei que morávamos na Torre de Pisa.
Uma voz me disse: "Sua mãe vai me matar."
Não respondi. Uma campainha familiar soou, uma porta se abriu, e algumas frases foram ditas. Eram assim:

' O que significa isso?' 'Minha senhora, eu...' 'Você não se envergonha, não?' 'Por favor, senhora...'
'Uma mulher dessa idade embebedando uma criança' 'Minha senhora, me perdoe, eu...' 'Ele é menor' 'Eu não sabia que...' 'Ah, não sabia?...' '...ele não bebia, eu não tive a...' 'Você não se enxerga não, é?' 'Ele está só um pouco tonto ... ' 'Uma mulher madura atrás de garotos? .. ' 'Eu não tive a intenção ... ' 'Vá embora daqui!' 'Por favor, não é nada disso ... ' 'O que você quer com meu filho?'

Creio que essa foi a sequência original das frases. Elas ficaram por alguns minutos, inagino, ricocheteando na minha cabeça, umas em tom de voz exaltado, outras em tom contemporizador, mas todas aparentemente simultâneas, enquanto eu, provavelmente, sorria. De qualquer forma, quando acordei na manhã seguinte, eu estava solidamente instalado na minha cama, embora minha cabeça jogasse para todos os lados disponíveis.
Lembrei que havia algo em um dos bolsos da calça que usara no dia anterior. Fui ao cesto de roupas sujas, onde minha mãe inadvertidamente a jogara, e a separei para vesti-la novamente. Enfiei a mão no bolso da frente, e de lá tirei o retrato, já meio amassado. Era um rosto banal, sem grande expressividade. Apenas a separação dos dentes da frente, na arcada superior, bem pronunciada, dava um toque peculiar à figura.
Minha mãe me alcançou, ainda antes que eu conseguisse entrar no banheiro.
"Que história é essa, de tu ficares até tarde da noite, te embebedando com aquela mulher, no apartamento dela? Desde quando tu conheces ela?"
"Eu conheci ela outro dia, por acaso, aí fora no corredor. Posso ir ao banheiro, agora?
Posso acordar, pelo menos?"
"E que intimidade tu tens com ela, prá ficares te embebedando com ela, no apartamento dela?"
Resmunguei alguma coisa, e consegui me desvencilhar dela, e entrei no banheiro.
Sentei na borda da banheira, e segurei a cabeça entre as mãos, com força, mas ela não parou de latejar.
"Porra!"
Acima da banheira, no lado em que ficava a pia, sob o aparellio de gás, havia um armário, que nunca era usado. Sem fazer barulho, abri a porta do armário. Era um dos lugares onde eu escondia a muamba de Valmar. Puxei a caixa embrulhada em papel pardo, e coloquei-a no chão. Abri o embrulho, puxando a fita adesiva sem fazer alarde. Eram garrafas de uísque. Refiz desajeitadamente o embrulho, e guardei-o. Levantei-me, e a cabeça latejou mais forte.
"Mas que merda", eu disse, olhando-me ao espelho. "Até quando tu vai ficar se metendo nessas merdas, seu mané? Por que tu não tira esse sorriso imbecil da cara? Aprende a fazer cara de mau, porra!"
Ensaiei algumas, ali mesmo. Nenhuma muito convincente.
"Teu destino é ser bom moço mesmo, otário. Tímido, e bom moço. E o único instinto
que tu vai despertar nas mulheres é o maternal, mesmo."
Sentei, tornando a segurar a cabeça entre as mãos. "Teu futuro é incestuoso, meu velho."
Ri-me um pouco, das bobagens que dizia. Pensei um pouco em meu pai, algo que já não fazia há tempos. O uísque era o mesmo que ele bebia, e servia aos muitos amigos, nos tempos das vacas gordas. Fiquei imaginando se ele não estaria na mesma situação do cara do retrato, com aqueles velhos olhos castanhos, fanados, ar trivial e dentes separados. Certa vez, meu irmão chamara a meu pai sonhador, e eu nunca conseguira vincular a figura dele a um epíteto tão despropositado. Parecia irreal, simplesmente, muito embora ele gostasse de ficar calado, longamente, dando a impressão, nessas ocasiões, de estar imerso em pensamentos profundos. Velhos Olhos Castanhos não parecia pensar em nada. Parecia apenas perguntar, 'o que estará pensando de mim a pessoa que está olhando este retrato, agora?' Arrependi-me de ter recusado ouvir, da segunda mulher do meu pai, detalhes da vida dele, numa ocasião em que nos encontramos, e ela parecia bastante disposta a fazer confidências, provavelmente encorajada por meu rosto neutro e sorriso de Gatsby. Talvez eu também chegasse à mesma conclusão.
Saí de casa, sem responder à minha mãe se voltaria para almoçar. De qualquer modo, a aventura com a vizinha já estava estragada. O que acontecera não fora exatamente o que eu imaginara que aconteceria entre nós, e agora só me restava executar a parte que me cabia, e prestar-lhe o favor a que me propusera. Se possível, com um sorriso no rosto.
Na portaria, encontrei Dênis, conversando com o porteiro. Acenei rapidamente para ambos, e fui andando, mas alguns segundos depois Dênis já estava ao meu lado.
"Vai prá onde, cara?"
"Vou ali", eu disse.
"Ali aonde, porra?"
"Na Igreja."
Ele deu uma risada. "Como é que é?"
"Eu vou ali, em São Paulo Apóstolo."
"Ah, sem essa, meu irmão. Desde quando tu é esse católico todo?"
"Desde que eu nasci."
"Desde que tu nasceu não, otário", disse Dênis, com autoridade. "Desde que tu foi batizado. A gente nasce pagão."
"É, é isso mesmo, então."
"E tu vai fazer o que, lá?"
"Assistir missa."
Ele riu, novamente.
"E desde quando tu assiste missa?"
"Eu sempre assisti."
"Há quanto tempo tu não vai numa missa, fala a verdade? Tu já foi alguma vez? E tem missa a essa hora?"
Por um momento pensei em responder pelo menos uma das três perguntas, mas não sabia ao certo a resposta de nenhuma delas.
"Ah, sei lá, Dênis."
"Tu já foi em alguma missa, na tua vida?"
"Eu fiz primeira comunhão", eu disse.
"Com quantos anos?"
"Nove, dez, sei lá."
"E depois disso, foi à missa quando? E decidiu ir agora, por que? Tem missa, a essa hora?"
Três perguntas, de novo, e nenhuma resposta.
"Não enche o saco, Dênis."
"Não, é sério, eu fiquei curioso. Eu também não vou à missa há um tempão. Que porra tu vai fazer na Igreja?"
Suspirei. Não era fácil se livrar dele.
"Tu não vai na Igreja porra nenhuma", disse Dênis. "Tá indo prá onde, seu cêpola?"
Nos tratávamos mutuamente por esse estranho codinome, naquele prédio. Desconheço seu significado, e é provável que seu criador, ou aquele que o introduziu em nosso jargão, não lembro quem exatamente, também desconheça.
"Eu vou na Igreja, cara. Fazer um favor, que me pediram."
"Quem pediu?"
"Aquela mulher que mora no 406."
Pela segunda vez me dei conta de que ainda não perguntara o nome dela. "Aquela gostosa? Que favor?"
"Um favor, cara. Negócio particular."
"Eu vou contigo. Eu sempre quis puxar conversa com aquela mulher, mas ela não se abre. Ela é sebosa prá caralho."
"Tu acha, é? Por que?"
"A mulher não fala com ninguém, cara."
"Ela falou comigo."
"Ela te procurou? Foi ela que puxou conversa contigo? Como é que tu consegui isso?"
Três perguntas. Acho que era um cacoete.
"Na verdade, fui eu que procurei ela."
"Porra, quer dizer que tu tá virando homem", disse Dênis, rindo debochadamente.
"Não é mais aquele fedelho que a gente podia dar uns cascudos a hora que quiser."
Ficamos em silêncio.
"Eu me lembro de vocês, antes de vocês irem para São Paulo", disse Dênis, pensativo. "Eu conversava com teu irmão. E tu ficava por perto, querendo escutar o que a gente conversava."
Fiquei pensativo também, recordando as mesmas coisas. "Que porra vocês foram fazer em São Paulo?"
Dei de ombros.
"Vocês voltaram pro mesmo apartamento, não é? Da dona Mira?"
"É", eu disse.
Ficamos em silêncio.
''Porra, tu fala pelos cotovelos, cara!"
Eu ri. De algum modo, era difícil se irritar com Dênis. Pelo menos por mais de um ou dois minutos.
"Que favor é esse que tu vai fazer prá ela?"
"Um negócio, aí."
"Que negócio?"
"É confidencial, Dênis. Eu não sei se ela ia querer que eu falasse disso com alguém."
"Ah, sem essa, meu irmão. Seé importante, ela ia querer que tu tivesse a ajuda de alguém. Que favor é?"
Por um momento eu realmente pensei em passar a bola para ele. Mas era um assunto muito íntimo e delicado.
"Eu ... vou procurar um cara."
"Que cara?"
"Um cara."
"Na Igreja?"
"É", eu disse.
"Ele é o que? Padre? Coroinha?"
Eu ri. Estávamos em frente à Igreja, vindos da Barata Ribeiro.
"Quem é o cara?", insistiu Dênis.
"O pai dela."
"O pai dela? Ele é o que? Padre?"
"Se ele fosse padre não era pai dela."
"E o que esse cara faz na Igreja?"
"Pede esmola."
Dênis me puxou pelo braço, forçando-me a parar. "Como é que é, cara?"
"É isso mesmo", eu disse, e resumi para ele a história da mulher. Dênis ouviu a história, em silêncio.
"Porra, mas que história sem pé nem cabeça!"
"Eu também acho. Aliás, ela mesma acha isso."
"Quer dizer que o pai dela é que nem o Mister Éter?"
"Que nem o Mister Éter, como assim?"
"Todo mundo fala que o Mister Éter tinha sido um cara de bem, universitário e tudo, ou professor, sei lá, enfim, um cara de posição. Mas aí parece que o irmão dele tomou a mulher dele, ou o dinheiro, sei lá, tomou tudo que ele tinha, e ele acabou virando mendigo, e ficou viciado em cheirar éter."
Fiquei pensando um pouco, lembrando a figura folclórica. ''E tu acredita nessas histórias?"
"Por que não?"
"Pode ser tudo mentira", eu disse, e ficamos em silêncio. "Minha mãe chamava ele de
Cheira-Éter."
"Eu nunca mais vi ele", disse Dênis. "Vai ver morreu."
"Porra, só de chegar perto daquele cara, eu já ficava doidão", disse Dênis, rindo. "O cara era muito louco. Mas não era agressivo. Ele pedia dinheiro, prá comprar éter, mas não era agressivo."
Estávamos em frente à escadaria da Igreja, agora cercada por grades. Diziam que o padre havia surpreendido, recentemente, dois mendigos fazendo sexo, em plena escadaria, e mandara cercá-la imediatamente.
"Não tem mendigo nenhum hoje aqui, cara", disse Dênis.
"É, acho que não. Eu vou me mandar."
Dênis me segurou.
"Como é que ela sabe que o pai dela anda por aqui?"
"Eu já te disse, porra. Alguém viu um cara, parecido com ele, por aqui. Mas ela não sabe se é ele. É isso que ela quer que eu descubra. Ela veio aqui um dia, para ver se era ele, mas não teve coragem de procurar. Desistiu no meio do caminho."
"Vamos", disse Dênis, subindo os degraus da Igreja.
"Onde é que tu vai, cara?"
Eu o segui.
"Tá indo prá onde, Dênis?"
"A Igreja tá vazia", disse Dênis.
"Eu tô vendo. Vamos se mandar daqui."
"Tu já foi lá em cima?", ele disse, olhando a cúpula da Igreja.
"Não, por que?"
"Vamos lá, prá ver como é lá em cima."
"Não tem nada, lá em cima. Só uns alojamentos dos padres, ou noviços, sei lá."
"Tem alguma coisa na cúpula."
"É uma estátua de São Paulo."
"Como é que tu sabe? Tu nunca foi lá em cima."
"Mas eu já estive ali", eu disse, apontando para um pavimento superior, na lateral da Igreja. "Dali dá prá ver."
"Tu foi fazer o que, ali?"
"Eu fazia parte de um coro, e a gente cantava ali. Era o coro dessa escola aí ao lado, que é da
Igreja. Eu estudei lá."
"Foi mesmo? Tu estudou em colégio de padre?"
"Quê que tem?"
Dênis riu.
"Nada. Eu também. Eu estudei no Santo Agostinho. Teu irmão também estudou lá."
Dênis começou a andar pela Igreja, procurando as escadas que levavam aos pavimentos superiores.
"Ali''', ele disse.
"Porra, cara, depois aparece o padre aí, e ele vai querer saber o quê que a gente anda bisbilhotando por aqui."
"Que nada."
Subíamos o lance de escada, estreito e mal-iluminado.
"Tem mesmo uma estátua de São Pedro, lá em cima?"
"São Paulo, porra!"
"É, São Paulo. Tem mesmo?"
"Claro que tem. Por que tu acha que essa Igreja se chama São Paulo Apóstolo?"
"Eu quero ver."
"Ver o que?"
"O santo."
E continuávamos a subir. Os corredores eram amplos, e nossos passos soavam pesadamente. Lá de cima a Igreja parecia outra, muito maior e mais iluminada. Quando chegamos ao último pavimento, havia um corredor com diversas portas. Algumas estavam entreabertas, mas a maioria estava fechada.
"Não é o santo que tá lá, Dênis, é só uma estátua."
"Shh", fez ele. "Esses aí é que são os alojamentos dos padres?"
"Sei lá, cara. Deve ser."
"Quê que deve rolar aí dentro? Putaria?"
"Vai lá e dá uma olhada."
"Será que tem gente aí?"
'Porra, Dênis, vamos dar o fora daqui."
Mas ele já avançava, no sentido oposto, em direção a uma espécie de nave, sob a abóbada central da Igreja. Num círculo, no meio da abóbada, estava a estátua de São Paulo, negra e brilhante. O vão do círculo era preenchido por uma cruz, cujos braços, partindo da amurada, se inclinavam levemente para cima, e sustentavam, no seu centro, o pedestal da estátua, que representava a metade de um globo. Debruçados na amurada, observávamos o andar térreo da Igreja, por entre os braços da cruz.
"Pronto, cara, tu já viu o que tu queria ver. Vamos se mandar daqui."
"Como é que eles lavam essa estátua?"
Olhei para ele, espantado.
"Eu sei lá, Dênis! Que idéia!"
Ele então trepou na amurada, equilibrando-se com os braços abertos.
"Ela brilha, cara!"
"Desce daí, Dênis, que porra! Ficou maluco, seu merda?"
"Fica quieto, porra!"
"Onde é que tu vai?"
"Vou tocar em São Paulo, cara!"
Já estava com um pé sobre um dos braços da cruz que sustentava a estátua, e, inclinando o corpo para a frente, segurou o braço da cruz com as duas mãos.
"Seu idiota, tu vai se estabacar lá embaixo!"
"Cala a boca", disse Dênis.
Subia lentamente, em direção à estátua, segurando firme o braço da cruz com as mãos, e avançando pé ante pé. Já estava na metade do caminho, com o tronco quase rente ao braço da cruz. A tentação de olhar para baixo o fazia ficar quase como um macaco agarrado a um galho. Ele então chegou ao pedestal, e ficou ereto o máximo que pôde, de costas para mim, com o corpo levemente inclinado para a frente, com os pés calcados de lado sobre o rodapé do meio-globo do pedestal. Esticou o braço direito, alongando o corpo e ficando na ponta dos pés, tentando alcançar a estátua.
"Não dá prá pegar nele", ele disse, voltando metade do rosto em minha direção.
"Sai daí, seu maluco, tu vai acabar se esborrachando lá embaixo."
Ele fazia um enorme esforço, com o corpo todo esticado, e o braço estendido ao máximo, mas não conseguia alcançar a estátua. Então, recuando um pouco, colocou o pé sobre uma reentrância do pedestal, ganhando alguns centímetros, e se preparou para uma nova tentativa, esticando novamente o corpo, na ponta dos pés, e estendendo o braço, com o outro braço apoiado no meio-globo.
Nesse instante ouvi o som de uma porta se fechando atrás de mim, e logo em seguida uma voz:
"Ei, vocês aí!"
Me virei, branco de susto. Um padre, de batina e tudo, se aprmamava, com ar igualmente assustado. Os passos eram curtos, mas rápidos.
"O que significa isso, em nome de Deus?"
Dênis não se virara. Continuava com o corpo estendido ao maxlmo, o braço para cima, em linha reta, as pernas também esticadas, tesas, tentando alcançar o santo.
O padre repetiu, angustiado:
"O que significa isso, em nome de Deus?"
Eu não sabia o que se passava na cabeça de Dênis, e talvez nem ele soubesse. Falei a primeira coisa que me veio à cabeça:
"É uma promessa, seu padre."
O padre me olhou, espantado:
"Mas que promessa é essa, meu filho?"
"Eu não sei direito, mas é uma promessa que ele fez."
O padre se debruçou sobre a amurada:
"Meu filho, volte! Sua promessa já está paga! Volte, em nome de Deus!"
"Não ouviu não, Dênis? Tu já pagou a tua promessa. Não precisa mais tocar no santo."
O padre voltou-se para mim:
"A promessa era de tocar a estátua?"
"Era", eu disse.
Dênis ainda estava na mesma posição, na ponta dos pés, o corpo teso, o braço estendido para cima. Quando o padre tomou a debruçar-se sobre a amurada, suplicando que desistisse de tocar a estátua e voltasse, ele virou a cabeça lentamente, e murmurou alguma coisa.
"Pode voltar, meu filho", dizia o padre, "Deus já o liberou de sua promessa. Você já demonstrou sua fé e a sua gratidão ao Senhor, já pagou pela graça alcançada. E não faça mais promessas como essa. Deus quer atos e penitências simples, que possam ser úteis e gratificantes para você e seus entes queridos, e para o próximo."
Normalmente eu estaria rindo, pois Dênis provavelmente acreditava tanto em Deus quanto eu em Papai Noel. Mas Dênis continuava murmurando algo, e eu percebia que alguma coisa estava acontecendo.
"Tá acontecendo alguma coisa", eu disse.
O padre voltou-se para mim. Pronunciara aquela pequena homilia de olhos fechados.
"O que?"
"Ele tá querendo dizer alguma coisa."
O padre voltou-se para Dênis. Finalmente este conseguiu dizer algo:
"Eu não consigo me mexer."
Eu me sentia paralisado, tanto quanto Dênis.
"O que aconteceu, meu filho?"
"Eu não consigo me mexer."
Dênis permanecia na mesma posição, mas agora tinha o rosto aparvalhado. A cabeça estava encostada no pedestal, e só os olhos pareciam se mover, e davam, ao seu dono, noção da altura em que se encontrava, e da encrenca em que se metera.
"Calma, meu filho", disse o padre, e voltou-se para mim: "Eu vou buscar ajuda. Fique aqui, eu volto rápido. É melhor que o padre Matteo nem fique sabendo disso. Eu volto logo."
Fiquei observando-o, enquanto ele se afastava. Quando voltei-me para vigiar Dênis, ele tentava sair do lugar, com dificuldade.
"Fica ai, cara, o padre foi buscar ajuda."
Mas Dênis estava se virando, lentamente, com o corpo aparentemente ainda rígido. A tensão arrefecia aos poucos, seus músculos relaxavam, e quando ele ficou de frente para mim, vi que ele estava rindo.
"Que brincadeira foi essa, cara?"
Ele agora descia o braço da cruz, meio de lado, lentamente. O riso ainda estava no rosto, mas à medida que ele se aproximava, eu percebia que ele tremia e suava, e estava lívido.
"Tu não tava com cãibra?"
"Porra nenhuma", ele disse, já na amurada. Passou a perna sobre ela e sentou-se, para retomar um pouco de fôlego, e esperar a tremedeira passar.
"Tu tá tremendo, cara!"
"Vamos", disse Dênis. Descemos as escadas.
"E o padre, cara?"
"Eu não tô com saco de ouvir sermão", disse Dênis. Depois parou, no meio do lance de escada, e voltou-se para mim: "Que história foi aquela de promessa? Prá que dar tanta explicação?"
"Porra, eu tinha que dar uma explicação. O padre pega a gente no meio da Igreja ... "
"Não tinha que dar explicação nenhuma pro cara, seu mané."
"Mas o que foi que aconteceu contigo, lá em cima? Tu tava tremendo. Tu tava com cãibra. Eu vi a batata da tua perna."
Dênis desconversou:
"Vamos logo, antes que aquele sacana apareça."
Estávamos na calçada, e atravessamos a rua. Dênis se escondeu atrás de uma árvore.
"Tá se escondendo de quem, cara?"
"Cala a boca", disse ele.
O padre, a essa altura, já devia estar lá em cima, com a ajuda prometida. Mas não havia com que se preocupar, pois bastava uma simples olhadela para baixo, para verificar que não havia ninguém estatelado no chão da Igreja. De repente, Dênis pôs a mão sobre o meu ombro:
"E o coroa, cara? O pai da garota?"
Eu já havia me esquecido, e não estava com vontade de levar aquilo adiante.
"Deixa prá lá. Eu vou dizer a ela que não era o pai dela, e pronto. Ela esquece isso num instante."
"Isso é sacanagem, cara. E se for o pai dela?"
"Não deve ser. Foi uma amiga duma amiga duma amiga que disse que viu o cara aqui. E se ela mesma não vê o pai há não sei quantos anos, como é que essas amigas podiam saber que era o cara?"
"Mas ela disse que achou que era o pai dela pela história, e não pela cara do sujeito. Não foi assim?"
Suspirei, desanimado.
"Cara, esquece isso. Ela disse que um dia teve notícia dele, que ficou deprimida e tudo, porque ele estava na pior. Mas depois ela esqueceu, e continuou vivendo a vida dela, numa boa. Vai ser a mesma coisa, agora. A gente diz que não era o velho dela, e pronto, fica tudo como era antes."
"Mas isso é sacanagem. Tu prometeu que ia procurar o pai dela."
"Mas a gente procurou, não procurou?"
"Claro que não", ele disse, e olhou para a fachada da Igreja. Fez menção de atravessar de volta a rua, mas estacou.
"Olha", ele disse.
Pensei que ele tinha avistado um mendigo, mas era o padre que nos interpelara, no alto da escadaria, olhando para todos os lados.
"Tá procurando a gente", eu disse.
Depois de alguns segundos, o padre desistiu, e voltou para a Igreja.
"Vamos", eu disse.
"Peraí", disse Dênis, me segurando pelo braço. "Essa Igreja aí tem uma entrada lateral, aí na Leopoldo Miguez, não tem? Que vai dar na sacristia? Vamos ver se tem alguém lá."
"Por que tu tá agora tão interessado em encontrar esse cara?"
Dênis não respondeu. Eu andava ao seu lado, e ele então levantou a mão na altura do meu peito.
"Olha ele ali."
Havia um homem, sentado na pequena escadaria, com aspecto de mendigo.
"Como é que tu sabe que é ele?"
"Eu não sei. Mas a gente vai descobrir."
"Não deve ser ele."
''Vamos lá saber."
Dênis caminhou em direção ao homem. Não havia nada a fazer, senão segui-lo. Quando nos aproximamos, o homem levantou o chapéu puído, com o indicador, e observou-nos, espantado, na expectativa.
"Como é o teu nome, velho?"
Dênis, que fizera a pergunta, virou-se para mim:
"Como é o nome do pai da garota?"
"Como é que eu vou saber?"
"Ela não te disse, não?"
''Não. Eu não sei nem o nome dela."
"Porra! Tu como investigador é uma merda!"
"Eu não sou investigador."
"Tu é um mané, mesmo."
O homem estava de pé, agora, e parecia assustado.
"Peraí, velho", disse Dênis, "a gente não é polícia, não. A gente não veio te levar pro Guandu, não."
"Que história é essa de Guandu?"
"A represa", disse Dênis. "Quando a rainha da Inglaterra veio visitar o Rio, o governo mandou recolher tudo quanto era mendigo das ruas, e mandou afogar lá na represa, prá rainha não pensar que aqui no Brasil tinha mendigo."
"Quem te contou isso?"
"Todo mundo sabe disso."
"Eu não sabia."
"Eu não tô dizendo que tu é um mané?"
Dênis aproximou-se do homem, que recuou dois passos, com dificuldade.
"Tua filha mandou te buscar, velho."
Eu peguei no braço de Dênis:
"Porra, como é que tu sabe que é ele?"
"Só pode ser. Não foi nessa Igreja que viram ele?"
"Sim, porra, mas deve ter uma porrada de mendigo que anda aqui nessa Igreja."
"Eu só tô vendo esse."
Tirei o retrato do bolso, e mostrei-o a Dênis.
"Ele nem se parece com o cara", eu disse.
"Porra, tu tinha esse retrato aí? Por que não me mostrou logo?" Dênis examinava o retrato.
"Essa foto é velha", ele disse. "Já tá desbotada. Deve ter mais de vinte anos."
"Ela disse que é de 65."
"Então, porra, tem quase isso. Como é que a gente vai reconhecer esse cara pela foto? Em vinte anos as pessoas mudam, cara."
"Vai dizer isso prá ela."
"Só tem um jeito, então. A gente vai ter que levar o cara lá, prá ela ver se é o pai dela ou não."
"Porra, tá maluco, cara?"
"É o único jeito."
O homem não se parecia muito com Velhos Olhos Castanhos, mas havia a barba cerrada, as rugas em profusão, o cabelo sujo e branco que caía pela testa sob o chapéu roto. Tudo isso dificultava a comparação. Tomei a foto das mãos de Dênis:
"Olha só, o cara do retrato tem os dentes da frente bem separados."
Dênis observou o detalhe, e me puxou de lado:
"A gente não pode chegar pro cara e pedir prá ele mostrar os dentes, como se fosse um cavalo. Faz o seguinte: a gente conversa com ele, e quando ele abrir a boca prá falar, a gente repara."
"Esse cara tá fedendo, Dênis."
Dênis se aproximou novamente do homem, que novamente recuou.
"E aí, meu velho? Tua filha mandou te buscar."
"Minha filha?", disse o homem, com a voz rouca, esboçando um sorriso.
"É, tua filha", disse Dênis.
Me puxou de lado:
"Porra, nossa identificação dentária furou."
O homem não tinha um dente na boca. Mas parecia animado, agora:
"Minha filha ... "
Olhamos para ele. "Onde está minha filha?"
Olhava para os lados, provavelmente cheio de expectativa paternal.
"O senhor tem uma filha?", eu disse.
"Não chama ele de senhor, porra", disse Dênis. "Tu tem uma filha, velho?"
O velho assentiu com a cabeça, diversas vezes, vigorosamente.
"Sim, sim! Onde está minha filha?"
"O senhor era o que, antes?"
O homem me olhou, aparvalhado, sem entender a pergunta:
"Porra, não chama ele de senhor, cara!", disse Dênis. "Quê que tu fazia na vida, velho?"
"Ah, a vida", disse o homem, evocativo. "Sim, sim, a vida, eu já fui gente, na vida ... eu já fui coisa, na vida ... tive família, tive mulher e filha, eu já fui coisa na vida ... "
Continuou murmurando a ladainha, nem sempre de forma audível. Quando acabou, baixou a cabeça, cansado.
"Ele era o que mesmo, o pai da garota?"
"Ela disse que ele era dotô adevogado", eu disse. Dênis riu, e olhou para o homem:
"Tu era o quê na vida, velho?"
O homem olhou para Dênis. Sibilava debilmente. Depois repetiu, vírgula por vírgula, a ladainha de já ter sido gente na vida.
"Porra", disse Dênis, impaciente, voltando-se para mim. "Esse cara não consegue dizer outra coisa, não?"
"Prá amiga da amiga da amiga da garota ele contou uma história e tanto."
"Acho que essa garota andou é sonhando."
"Talvez ele estivesse mais sóbrio, no dia."
"Ele não tá muito bêbado, não."
"Vamos se mandar daqui, Dênis."
"Ei, velho, tu era o que? Advogado?"
O homem assentiu com a cabeça, vigorosamente, depois nos encarou, imponente e desafiador.
"Olha só", disse Dênis, rindo. "Parece um dotô adevogado mesmo. Só falta a beca."
"Porra, Dênis, vamos embora daqui. Deixa esse maluco aí. Eu vou dizer à garota que
não era o pai dela, e pronto."
"E se ele for o pai dela?"
"Não é, cara. Não é."
"Como é que tu sabe?"
"Não sei, cara, mas não é ele. Um cara que já foi advogado, teve família, sei lá, não pode descer tão baixo assim."
"E o Mister Éter?"
"Quê que tem o Mister Éter?"
"Ele também foi coisa na vida, e desceu."
"Como é que tu sabe que o que falam dele é verdade?"
"E quem garante que não é?"
Dei de ombros, desanimado.
"Dênis, esse cara não é o pai da garota."
"A gente faz o seguinte: a gente leva o velho lá, no prédio, prá garota dar uma olhada nele, e aí ela diz se é ou não o pai dela."
"Tu tá maluco, porra?!"
"É o único jeito, cara."
"Não. Foi prá mim que ela pediu prá investigar essa porra, e eu tô dizendo que a gente não vai levar esse cara lá no prédio."
"Ah, sem essa, meu irmão. Já que ela pediu prá fazer alguma coisa, tu tem que fazer essa coisa bem feita."
"Cara, se essa garota descobre que eu contei a história dela prá alguém, ela vai ... "
"Ela vai o que?"
"Ela vai ... ela vai me odiar, cara."
Na verdade ela não falara nada sobre manter sigilo, mas eu tinha a nítida impressão de ter cometido uma gafe terrível ao envolver uma terceira pessoa na história.
"Que nada", disse Dênis. "Se for mesmo o pai dela, ela vai te agradecer de joelhos. Pode até sobrar um pouco de gratidão prá mim, também. Eu sempre quis, mesmo, chegar junto dela, mas ela nunca dá chance."
"A gente não pode levar esse cara lá no prédio, Dênis. Ele tá fedendo, é um mendigo, cara! O Batata não vai deixar a gente entrar. E se o síndico estiver na portaria, como é que vai ficar?"
"Não esquenta com isso, não, que isso é fácil de resolver. Tu entra com ele pela garagem, enquanto eu distraio o Batatinha. E aquele síndico já tá virando cobra, o cara tá mais morto do que vivo. Ele deve ter uns cem anos. Ele é judeu, que nem aqueles caras da Bíblia. Aqueles caras viviam quinhentos, seiscentos anos."
"E se não for o pai dela?"
Eu já não tinha mais argumentos.
"Só ela vai poder dizer."
"Porra, Dênis, vamos largar esse cara aí ... "
Mas Dênis já se voltara para o homem:
"E aí velho? Quer reencontrar tua filha?"
"Onde está minha filha?", disse o homem, novamente olhando para os lados.
"Ela mora aqui perto."
O homem aproximou-se de nós, colocando-se ao lado de Dênis, em quem parecia confiar mais. Olhando para o prédio em frente, disse:
"É ali?"
Encaminhou-se para o meio-fio, pronto para atravessar a rua.
"Por aqui, velho."
Dênis começou a andar em direção a Bolívar, seguido pelo homem, que andava com certa dificuldade, mas com passos rápidos.
Corri atrás de Dênis:
"Tu tá maluco, cara? Tá levando esse cara prá onde?"
"Prá casa da garota. Não foi isso que tu prometeu a ela?"
"E se não for o cara?"
"Não dá prá saber pela foto, nem pela descrição. Só ela vai poder dizer."
O caminho até o nosso prédio foi pontilhado por esse diálogo, com pequenas variações. Eu suplicava para que ele desistisse do seu intento, mas Dênis era irredutível. Quando chegamos, ele mandou que eu fosse com o homem para o outro lado da Bolívar, e atravessasse de volta no cruzamento com a Tonelero, para que eu pudesse entrar no prédio pela garagem enquanto ele distraía o porteiro.
Pensei em seguir com o homem pela Tonelera e largá-lo por lá, depois do Olímpico, mas Dênis viria atrás de nós, quando percebesse a manobra. Cumpri então minha parte no plano, e fiquei esperando Dênis ao pé do lance de escada que levava ao hall do elevador de serviço. Ouvi a voz de Dênis:
"Sobe, porra! Tá esperando o que?"
Estiquei a cabeça, no vão do lance de escada, e lá em cima vi o rosto de Dênis, que me acenava com a mão, para que eu subisse com o homem.
''Vamos pela escada, mesmo", disse Dênis. "Será que o velho agüenta? São só quatro andares."
O homem vinha atrás de nós, já meio trôpego, mas com uma espécie de ar bíblico de bem-aventurança. O que ele pensava que estava por acontecer? Não pude deixar de rir, imaginando que ele estaria saboreando, de antemão, o prazer de estar num lugar aquecido, com comida à mesa, e comida boa, quentinha, e, com certeza, algo para beber.
Fiquei na escada, com o homem, enquanto Dênis, sempre assumindo a liderança de tudo que se metia a fazer, foi ao 406. Ouvi um diálogo rápido e nervoso entre os dois, algumas palavras ríspidas, mas não consegui captar o sentido do que estava sendo dito. Alguns instantes mais e a garota veio até onde eu aguardava com o homem. Tinha um ar incrédulo, e, creio eu, escandalizado.
"O que significa isso?", ela disse, com a voz estridente, sem olhar para o homem.
Olhava para mim, com ar acusador, vítima de alta traição.
"Nós trouxemos ... ", começou Dênis.
"Por que você fez isso?", interrompeu ela, olhando sempre para mim.
Eu não sabia o que dizer, e nunca me senti tão desconfortável em toda minha vida.
Havia, sem dúvida, duas ou três coisas a dizer, 'foi sem querer, eu sinto muito, eu não queria envolver mais ninguém nessa história', e coisas do gênero, mas eu sentia um grande desânimo, e, além disso, confiava em Dênis para as explicações e desculpas. Mas ela não deu atenção a ele. Toda a sua mágoa, revolta, ou decepção, o que quer que fosse, estava concentrada em mim. O que se seguiu é muito ridículo para contar. Não era o pai dela, é claro, e ela ficou, de fato, histérica com tudo aquilo. Deve ter me xingado, também, eu imagino. Eu estava muito ocupado tentando mandar o homem embora. Dênis tentou conduzi-la de volta ao apartamento dela, chegando a oferecer-lhe o braço, provavelmente pronto para me desancar, também, pela minha falta de tato e consideração, mas acabou levando um safanão e tanto. E, por incrível que possa parecer, ao retomar, Dênis estava rindo.
Nos livramos do homem, que não tinha como manifestar a sua decepção, pela frustrada tentativa de reencontrar a família, ou, o que é mais provável, por ver escapar aqueles deleites que eu julgara ter visto antecipados em seu ar ávido.
"Porra, que merda", disse Dênis.
Olhei bem para ele.
"Porra, é só isso que tu tem prá dizer? Porra que merda?"
Ele riu.
"Não era o pai dela, cara. Quê que eu posso fazer?"
Ele passou o braço sobre meus ombros.
"Ah, esquece isso. Não esquenta, não. Por que tu prometeu fazer esse favor prá ela? Pensou que ela ia soltar a ... ", e fez um triângulo com o polegar e o indicador de ambas as mãos, "...prá tu?"
Suspirei. Não havia o que fazer. Estávamos na rua. Esperei que Dênis fosse para um lado, para que eu pudesse ir para o outro. Mas, em lugar disso, parei, de súbito. Dênis não percebeu, e seguiu na direção da Barata Ribeiro.
"Dênis!"
"Que foi?"
"Tu reparou nos olhos do cara? Eram castanhos?"
Ele abriu os braços, e franziu os lábios. Me virei e fui andando, e, por algum motivo, Dênis não me seguiu. Pensei em voltar, e perguntar o que ele tinha conversado com a garota, enquanto eu esperava com o homem, na escada. Lembrei do retrato, no bolso da minha calça. Era preciso devolvê-lo, é claro, e cheguei a parar, tirando-o do bolso e fazendo menção de voltar ao 406. Mas desisti, imaginando que a garota não deveria estar muito disposta a me olhar na cara. Fiz um rápido balanço, para ver o que tinha perdido, naquilo tudo. Nada, no fim das contas, a não ser uma amizade casual. Guardei o retrato no bolso.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Notas soltas sobre acordes repetitivos

Um Parto (Parte da coletânea Velhos Olhos Castanhos) Taciane e Sílvio fizeram parte da fauna por pouco tempo. Haviam alugado o 405. Ela fazia artesanato, que vendia em Ipanema, na feira – me convidara inclusive a ir lá, um dia desses – e ele era poeta. Imprimia pequenas plaquetas, com suas poesias, e me pedia que as lesse em voz alta. Taciane era muito branca, tinha cabelos castanho-claros encaracolados, e aparência não muito saudável. Ao menos era essa a minha impressão. Ele, evidentemente, cultivava uma imagem, cabelos longos, óculos de aros redondos, barba por fazer. Estava sempre assim. Deu-me exemplares de três livrinhos seus, mandados imprimir por ele mesmo. No apartamento deles eu senti, pela primeira vez, o cheiro de cigarros de maconha. Ofereceram-me, uma vez, mas eu recusei.
Conversar com Sílvio era ser submetido a uma saraivada de nomes de autores, estilos literários, períodos, e esse tipo de coisa. Taciane o observava nessas horas, enquanto se ocupava de seu artesanato, evidentemente apaixonada. E eu me perguntava - com ar de quem estava muito interessado no que ele falava, o que diabo tinha ela visto naquela figura esquálida e recitativa. Mas isso, de qualquer forma, não era da minha conta. O quê ela teria visto em mim, igualmente? Sílvio me achava extraordinariamente sensível (palavras dele), e acho que tentava, de alguma forma, me cooptar, me transformar num poeta, ou coisa que o valha. Ele também me achava extraordinariamente (tinha uma queda por esse ‘extraordinariamente’) receptivo, o quê quer que isso significasse, mas em verdade o que eu gostava mesmo era de ver Taciane, armando colares de contas, esculpindo pequenas peças em madeira, sentada como o Buda, com uma bata bem curta e sem calcinha, bem à minha frente. È claro que eu, às vezes, me perguntava se já não havia passado da idade de apelar para esse voyeurismo, ainda que involuntário, mas que diabo!, era ela que proporcionava o espetáculo, ainda que involuntariamente, também. E me perguntava, também, se Sílvio saberia ou não o verdadeiro motivo de meu comparecimento, dia sim, dia não, para apreciar o espetáculo de sua inteligência em movimento e tomar conhecimento daquele mundo tão extraordinário, naturalmente guiado por ele, enquanto tentava, furtivamente (creio eu), distinguir o que era pêlo e o que era pele naquele pequeno trecho de paraíso com iluminação indireta.
Enquanto ele falava, cada dia mais verborrágico, Taciane não dizia nada, observando respeitoso silêncio. Provavelmente jamais passou por sua cabeça a idéia de que sentar-se, de bata curta e sem calcinha, frente a frente com um estranho, pudesse ser algo indecente, ou mesmo impróprio. As pessoas sentavam-se, e era só, não importando o que estivessem vestindo, ou, no seu caso, o que não estivessem vestindo.
Aquilo durou algumas semanas, talvez um mês. Ficou claro que não havia qualquer malícia da parte dela, nem sequer a sombra de uma segunda intenção, pois ela pouco olhava em minha direção, e, quando o fazia, era apenas um relance. Quando o espetáculo perdeu o gosto da novidade, eu deixei de ir lá. Aquilo era coisa de adolescente, e de certa forma me repugnava continuar agindo como um. Permanecia apenas uma certa contrariedade, despertada por aquela devoção de Taciane por Sílvio. Ciúmes, provavelmente, mas eu nada sabia a esse respeito. Talvez sequer tenham dado pela minha falta. Ela não era diferente de ninguém, não era diferente de Rosângela, que não tinha ocupação conhecida e era tão mais acessível. Mas o que me atraía em uma não era a mesma coisa que me atraía na outra. Era como se não sentisse desejo realmente por ela, mas quisesse ficar perto. Com Rosângela, uma vez passada a febre, cessava a vontade de ficar perto.
Um dia eu estava imerso em pensamentos (talvez os do parágrafo anterior), quando Taciane veio me procurar. Reclamou da minha ausência, perguntando-me se ela havia feito qualquer coisa que justificasse tão prolongado afastamento. Eu disse que não, claro. Contou-me, então, que Sílvio tinha ido embora. Mas não era nada demais. Ela apenas revelara a ele que estava grávida, e que, dessa vez, não abortaria. Depois de algumas semanas de comportamento estranho e ausente, respostas lacônicas e reticentes, ele desapareceu. Ela estava com aparência ainda menos saudável que o habitual.
No apartamento dela, os poucos móveis, agora, davam ao local a aparência de um lugar prestes a ser abandonado, do qual não se guardarão boas recordações, mas difícil de ser deixado para trás, da mesma forma. Ela me mostrou um papel, uma notificação de despejo, creio eu. Do que ela falou, de modo confuso e entrecortado, eu deduzi que o aluguel era pago por Sílvio, ou melhor, pelos pais dele, que também custeavam a impressão de suas plaquetas. A notificação era endereçada a ele. Taciane me disse que já entrara em contato com seus pais, que moravam em outro estado, anunciando que em breve estaria de volta, e pedindo que lhe mandassem dinheiro para a passagem. Entendi que a notícia não fora muito bem recebida lá, no Paraná, ou Santa Catarina, não lembro ao certo, e que isso a deixara abatida. Fiquei melancólico, ouvindo aquilo.
Perguntei a ela se estava grávida, mesmo, pois quase não tinha barriga alguma. Ela então levantou a bata, que a disfarçava bem, embora fosse muito pequena. Sutiã também não era um item em seu vestuário. O quê eu poderia fazer por ela? Ela confessou então que me procurara para pedir que passasse a noite com ela, pois não se sentia bem. Tivera, na noite anterior, um pesadelo terrível, e não queria ficar sozinha. Concordei na hora, sem hesitar, mas era como aceitar o convite de uma irmã para dançar. Perguntei como fora o pesadelo, mas ela não soube dizer. Dormimos juntos, eu com o braço passado sob sua nuca, ela com a cabeça abandonada sobre meu peito.
De manhã, gemidos sufocados de dor me despertaram. Ele já não estava a meu lado, estava fora do colchão, de cócoras, e, ao me ver acordado, passou a chorar baixinho, soluçando dolorosamente, enquanto um líquido escuro e viscoso saía do seu corpo e alagava o assoalho. Fiquei alguns segundos sem ação, mas aquilo durou pouco. Vi que havia algum dinheiro em minha carteira, e alguns minutos depois estávamos na rua, ela enrolada num lençol, eu descabelado, mandando o porteiro conseguir um táxi urgente. A caminho do hospital, Taciane não falava nada, respirava irregularmente, e tinha tremores. Chegando à Emergência, onde ela foi colocada numa maca, eu fiquei aguardando que algo acontecesse. Pouco depois a levaram para dentro, e pessoas de branco começaram a fazer perguntas que eu não sabia responder. Pré-natal, quantos meses, coisas assim. Eu nada sabia a respeito. De repente me vi sozinho. Mas não por muito tempo. Um médico veio em minha direção, trazendo consigo uma legião. Enfermeiras, parentes de pacientes internados, de feridos graves, todos querendo atenção. Dei um passo para trás, para dar passagem, mas ele falou comigo. As pessoas ao seu redor falavam também, perguntavam, esbravejavam, exigiam respostas. Fiquei sabendo vagamente que meu filho nascera prematuro, e que estavam tentando salvá-lo, e à minha esposa, também. O médico e sua legião se afastaram, com estrépito, e era como se algo, no vácuo de sua passagem, houvesse apagado as luzes, e sugado todo o ar do mundo, para que nenhum som mais se propagasse. Saí daquele ambiente doentio. Mas lá fora nada melhorou. Sentei-me numa amurada. Eu continuava com a sensação de surdez, enxergava com dificuldade, olhava os carros silenciosos, e procurava arrancar algum som deles, de algum lugar, dos pneus, de seus passageiros ocultos pela sombra. O dia era claro, ensolarado, e era um dia normal, mas algo irrompera nele, vindo não sei de onde. Algo irrompera no dia, na vida, e eu não sabia o que era.

Explicação Necessária

As duas histórias postadas se referem às melancólicas aventuras de dois irmãos, em algum lugar dos anos 80. Um amigo meu, à época da redação dos textos - o maluco que foi para a Venezuela - batizou meu "estilo" de lirismo lacônico, e o rótulo me pareceu, durante algum tempo, mais inspirado que o próprio estilo. Quanto aos textos, há muitos anos eu tive a intenção de publicá-los da forma normalmente aceita, mas creio que todos sabem como isso é dificil e, principalmente, entediante. De qualquer forma, o restante dos textos será postado oportunamente, ou seja, nos intervalos do meu trabalho. À guisa de informação, são histórias que se passam naquele limbo entre o fim da adolescência e o início da vida adulta, onde lirismo e vulgaridade andam juntas, frequentemente de mãos dadas. É isso. Obrigado pelo tempo de vocês!

O que se seguiu...

MÔNICA

Ouça Trois Gnossiennes de Erik Satie ao ler este texto

Eles vinham pela Bolívar. Antes de atravessar a Barata Ribeiro, ele parou, próximo a uma banca de jornais.
“Que foi?”
“Nada”, ele disse.
“O sinal tá aberto, vamos atravessar logo”, ela disse.
“Olha ali do outro lado.”
“O quê?”
“Ali, aquele cara.”
Ela olhou para o outro lado da rua. Um homem alto, magro e calvo, de pele bem branca, andava de um lado para o outro. Vinha até o hidrante da esquina e voltava até a portaria do prédio para onde eles se dirigiam. O homem levava um cigarro à boca, em intervalos regulares.
“Quem é ele? Você conhece?”
“Ele mora nesse prédio onde eu morei.”
“Mas você conhece ele?”
“Mais ou menos.”
“Ele já deve ter percebido que a gente tá observando ele.”
“Não”, ele disse. “Não...”
“Como é que você sabe?”
“Eu não sabia”, continuou ele, “que ele descia a essa hora. Quer dizer, eu nunca tinha visto ele na rua a essa hora.”.
“Como assim? Ele faz isso sempre?”
“Isso o quê?”
“Ficar assim, andando de um lado para o outro, na rua.”
Ele riu.
“O quê foi?” ela disse.
“Nada, não. Meu irmão não gostava que se falasse assim.”
“Assim como?”
“Andar de um lado para o outro. Como se fosse coisa de maluco.”
Ela riu, também.
“Mas não é o que ele está fazendo?”
“Aparentemente, sim.”
Ele a apertou nos braços e beijou-a na boca. Ela se afastou dele.
“Explica isso direito, vai.”
“Não, não é nada, não. Esquece.”
Ela estava parada, e resistia à mão dele, que a puxava para que atravessassem a rua.
“Que foi? Tá com medo dele?”
“Vamos pra sua casa”, ela disse, de repente.
“Minha casa? Por quê?”
Ele soltou a mão dela.
“Meu irmão deve estar em casa.”
Começaram a atravessar a rua. Ela havia dado a mão a ele. Passaram ao lado do homem. Como já soubesse o que tinha a fazer, ela foi até a porta da garagem. Voltou-se para observar o homem, discretamente. O namorado voltou.
“Vamos.”
Desceram a rampa da garagem, e se dirigiram ao elevador de serviço.
“Pegou um com mobília?”
“Não”, ele disse, e olhou para ela. “Ah, Mônica, qual é? Com mobília o Batata cobra mais caro. Eu tô duro.”
Ficaram em silêncio.
“Vai ficar com essa cara, é? Só por causa disso?”
Ela fez um gesto com a mão, para que ele parasse. Saíram do elevador. De repente ele parou e deteve-a pelo braço:
“Quer ir embora? Se você quiser a gente sai daqui agora mesmo.”
Ela se soltou, e seguiu em frente.
“Qual é o apartamento?”
“É só falar, Mônica. Quer ir embora?”
“Fala baixo”, ela disse. “Vai acordar todo mundo.”
“Ah, que se foda todo mundo.”
Ela esperou alguns segundos, e perguntou novamente qual era o apartamento, puxando-o pelo braço. A resistência foi diminuindo, e eles seguiram em frente. Ele girou a chave na fechadura, com cuidado, e abriu a porta lentamente, prevenindo possíveis rangidos.
“Entra”, ele disse.
Ela entrou. Com a porta ainda aberta, um breve clarão vindo do corredor iluminou a sala, e ela procurou localizar-se no apartamento. Logo, a janela tornou-se o único ponto de referência possível. Ficou parada, em pé, no meio da sala vazia, e ouviu o ruído da porta sendo fechada.
Sentiu um leve arrepio quando ele tocou-lhe os ombros e beijou-lhe a nuca. Foi até a janela e olhou para baixo.
“Sai da janela, Mônica!”
“A janela do quarto dá pra Bolívar?”
“Eu não sei. Eu não morava nessa coluna. Acho que dá. Por quê?”
Ela entrou pelo apartamento, já mais habituada ao escuro.
Ele a acompanhou com os olhos, sem entender. O toalete, pensou. Começou a desabotoar a camisa. Ela não voltou da pequena incursão, e ele parou de despir-se e foi procurá-la. Encontrou-a num dos quartos, debruçada na janela.
“Sai da janela, Mônica! Alguém pode te ver, e a gente acaba complicando a vida do Batata!”
Ela fez um sinal para que ele se aproximasse.
“Ele ainda está lá”, ela disse.
Ele permaneceu parado.
“Ele quem?”
“Aquele cara, lá embaixo.”
“Ah, sei. E daí? Esquece ele.”
Ela se virou para ele: “Como é o nome dele?”.
“Roberto”, ele disse.
Ela se aproximou dele, acariciou-lhe o peito, beijando-o suavemente.
“Por que você briga comigo?”
“Eu não brigo com você. Vamos. A gente tá perdendo tempo.”
“Por que ele faz isso?”
Estavam abraçados.
“Do quê que você tá falando?”
“Por que aquele cara fica na rua, andando de um lado para o outro?”
“Eu não sei, Mônica”, ele disse.
“Ele é louco?”
Ele riu, e relaxou um pouco.
“Eu não sei. Quer dizer, acho que é. Ele uma vez disse pra minha mãe que o irmão dele é que é o verdadeiro louco da família. E ele estava falando sério.”
“Sua mãe conhece ele? Conversava com ele?”
“Conversava.”
Ela se afastou um pouco, para olhar para ele. Estava rindo, e disse:
“E é verdade?”
“O quê?”
“Que o irmão dele é louco?”
“Não sei. Por quê?”
“Porque se ele não é o maluco da família, e fica de noite na rua andando de um lado para o outro daquele jeito, imagina o que não faz o irmão dele, que é o louco de verdade.”
Ele a abraçou novamente, um abraço apertado e carinhoso. “É verdade. Mas que importância tem isso?”
“Me fala sobre ele. Por que ele ficou louco? Ou ele nasceu assim?”
Ele fez um leve gesto de impaciência.
“Eu não sei, Mônica. Eu não sei. Quando eu vim morar aqui, ele já tinha esse hábito de ficar na rua, andando de um lado para o outro. Eu só não sabia que ele ficava na rua até essa hora. Ele já era maluco quando eu cheguei aqui. Agora, eu não sei se ele já nasceu assim ou se ficou assim depois. Eu nunca troquei uma palavra com ele.”
“Nunca?”
“Nunca. Quer dizer...”.
Afastou-se um pouco dela.
“Mônica, a gente tá perdendo tempo...”
“Conta, vai. Conta. Você falou com ele alguma vez?”
“Um dia eu desci o elevador com ele. Eu tinha uns dezesseis anos, eu acho, e tava indo pra escola. Sempre que a gente ia pegar o elevador e via que ele estava lá, a gente voltava, inventava uma desculpa na cabeça, ou fingia que tinha esquecido alguma coisa em casa, só pra não ficar com ele no elevador. Mas naquele dia eu não fiz isso. Eu tava com um caderno debaixo do braço, aberto numa das páginas. Eu fiquei encostado na parede do elevador, me cagando de medo, sei lá por que. Aí ele chegou perto de mim, apontou pro caderno e disse: ‘Química? ’ Aí eu disse, ‘é’, e aí ele começou a rir bem alto, aquelas risadas de maluco que a gente vê nos filmes... igualzinha. Aí eu olhei pra ele e dei o sorriso mais sem graça que eu já dei na vida. E olha que eu já dei uma porrada de sorriso sem graça na vida. Mas esse foi o mais... foi mesmo.”
Ficou alguns segundos em silêncio, e depois continuou:
“E enquanto ele dava risada, eu olhei a cara dele. Ele não tinha um dente na boca.”
Olhou para ela na penumbra, e era angustiante não poder certificar-se de que havia compaixão no rosto dela.
“Dizem que o irmão dele tinha mandado arrancar os dentes dele, pra que ele não se machucasse. Dizem também que as paredes do quarto dele são acolchoadas, pelo mesmo motivo.”
Ele se dirigiu à porta do quarto.
“Dizem que o irmão dele”, continuou, sem olhar para Mônica, “tentou internar ele, e tudo, depois que a mãe deles morreu. Não queria ficar com a responsabilidade. Mas ele começou a. deixar de comer, não fazia nada, não descia mais pra rua, ficou assim...”
Encurvou o dedo indicador, na penumbra, sem se importar se ela via ou não.
“E aí?” perguntou ela, que o havia seguido.
“Aí o irmão desistiu de internar ele.”
Ainda estava entre a soleira da porta e o corredor que levava à sala. Depois de alguns instantes de silêncio, ela também saiu do quarto.
“Vem”, ele disse, estendendo a mão para ela.
Sem tomar a mão dele, ela o seguiu até a sala. Despiu-se. Sentou-se na posição do Buda, e mais uma vez estendeu a mão.
“Vem.”
Ela despiu-se lentamente, enquanto ele permanecia alguns segundos com a mão estendida.
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De súbito, ela se afastou dele.
“Vamos pra sua casa”, ela disse.
Ele a encarou ainda uma vez, incrédulo. Afastou-se dela, inclinando o tronco para trás e apoiando os cotovelos no chão.
“Mônica...”
“Por favor”, ela disse, com doçura. “Eu não quero mais ficar aqui.”
Levantou, e começou a vestir-se, rapidamente.
“Eu não sei”, ela disse, “que necessidade a gente tem de ficar vindo aqui.”
“Eu não posso te levar lá pra casa, toda vez que a gente quiser...”
“É só pra isso que você me quer?”
Ele a observava, desconcertado.
“Porra, Mônica, não é só pra isso que eu te quero! Vai começar de novo?”
Ele levantou, realmente nervoso.
“Minha casa não é motel, porra! Mora gente lá!”
Ela também estava nervosa.
“Não vejo porque esse prurido todo”, ela disse. “Tua mãe dorme o tempo todo, e teu irmão não tá nem aí pro que a gente faz ou deixa de fazer. E foi você que me levou lá pra isso, a primeira vez”
“É por causa dele que você quer ir pra lá, não é?”
“O quê?”
“Por que você não abre o jogo?”
Ela o encarou: “Se você soubesse como você está sendo...”
“Ah, sem essa, Mônica”, ele disse.
“Vai ter crise de ciúme agora, é?”
Entreolharam-se por um instante. Ela disse: “Não estraga tudo que...”
“Estragar o quê? O que já tá estragado?”
Ficaram apartados, distantes, cada um a sós consigo mesmo.
“Por que você não abre o jogo logo? Você gosta dele? Tudo bem, eu não vou te odiar por isso. Eu posso ser tudo, menos irracional. E não sou burro, também. Posso não ser um intelectual como vocês dois, mas não sou burro. Eu sei quando sou demais.”
Ela não disse nada.
“Vai, Mônica, fala alguma coisa. Diz que gosta dele, e a gente acaba tudo agora.”
“Você está sendo ridículo.”
Estavam ambos vestidos. Entreolharam-se novamente, como se perguntassem um ao outro o que os mantinha ali, ainda.
Saíram do apartamento em silêncio, e ele bateu a porta. Ela fez um gesto para que ele não fizesse barulho, mas ele não deu atenção.
Desceram pelo elevador, e saíram pela garagem. Ele deixou a chave na mão do porteiro, e, andando lado a lado, acompanharam Roberto em sua viagem ao hidrante da esquina.
“Tá indo pra onde?”, ela disse, quando percebeu que ele se preparava para atravessar a Barata Ribeiro.
Ele parou, já sobre a faixa de pedestres.
“Pra casa”, ele disse.
“Vamos andando”, ela disse.
Ele suspirou.
“Você quer mesmo ir lá pra casa?”
“Vamos”, ela disse, estendendo a mão para ele.
“Quer encontrar ele, é?”
Mas já não havia raiva na voz dele. Ela disse: “Se ele estiver lá, eu vou falar com ele. Dizer boa noite.”
Ele voltou ao passeio, ignorando a mão estendida dela. Começou a andar afastado, sempre alguns passos à frente.
Alguns metros depois, ela disse, rindo: “Quer parar com isso? Fica do meu lado, vai.”
Ele permaneceu com a cara amarrada, alguns metros à frente.
“Ei!”, ela disse, parando e puxando-o pela manga da camisa.
Ele se voltou. Ela então deu as costas a ele, e caminhou em sentido contrário, ereta, depois deu meia-volta e caminhou na direção dele, levando à boca um cigarro imaginário, num movimento sincronizado e metódico. Estava rindo.
"Deixa de palhaçada", disse ele.
Ela pegou o braço dele, ainda sorridente.
“É sério”, disse ela. “Eu gostei do sistema daquele cara. Andar de um lado para o outro. Deve ser um barato.”
Ficou em silêncio, pensativa.
“Por que seu irmão não gosta que se fale assim?”
“A gente não tá indo lá pra minha casa? Lá você pergunta a ele.”
Ela ignorou a grosseria.
“E se ele não estiver lá?”
“Ele nunca sai de casa.”
“Isso não é verdade. Vai, diz. Por que ele não gosta que a gente fale, andar de um lado para o outro? Tem outro nome pra isso?”
“Robertar”, ele disse, em voz baixa e olhando para o outro lado da rua, como se nutrisse a esperança que ela, não ouvindo direito, perdesse o interesse por aquele assunto.
“Robertar!” ela disse, rindo. “Mas é claro! Roberto, robertar!”
Ria agora com franqueza, divertida. E o encanto daquilo desanuviou um pouco o rosto dele, e ele descobriu-se disposto a falar.
“Foi ele mesmo quem inventou o nome?”
“Não”, ele disse.
“Quem foi? Seu irmão?”
“Minha mãe.”
Ela não escondeu a surpresa: “Sua mãe?!”
Ele suspirou.
“Um dia ela descobriu que eu e meu irmão, a gente ficava de madrugada andando de um lado para o outro, no nosso quarto, e perguntou o quê a gente tava fazendo. A gente não respondeu, e aí ela perguntou se a gente tava robertando. Foi nesse prédio mesmo, a gente morava no 4º andar.”
Ficaram em silêncio, e ele estranhou o silêncio dela, que não ria mais.
“Vocês ficavam andando de um lado para outro, no quarto de vocês, de madrugada, juntos?”
Ele fez que sim, com a cabeça.
“Por que vocês faziam isso?”
“Não sei”, ele disse. “Um dia eu cheguei em casa de madrugada, entrei no quarto e ele estava lá, andando de um lado para outro.”
“E aí?”
“Aí eu perguntei o que ele estava fazendo, e ele disse, nada.”
Ficaram em silêncio, novamente.
“E aí?”
“E aí? Não sei, Mônica. Não sei. Acho que eu comecei a andar, junto com ele.”
Caminhavam agora de mãos dadas.
“Vocês ficaram andando juntos?”
“É”, ele disse.
Experimentava novamente uma sensação de vergonha, por ter contado aquilo.
“Negócio ridículo, não?”
“Não”, ela disse, e repetiu, com vivacidade: “Não.”
“Tem tempo que a gente não faz mais isso.”
Era como se houvesse acabado de revelar, contando aquela história, um segredo profundamente íntimo, o único que jamais tivera.
“Por quê?”
“Por que o quê?”
“Por que vocês não fazem mais isso?”
“Não sei”, ele disse, depois de pensar alguns segundos.
Dali até a Prado Júnior nada mais foi dito. No apartamento tudo estava quieto. A mãe dormia no sofá, e a porta do outro quarto estava encostada. Eles foram direto ao quarto dele.
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Entrei no quarto. Havia um cheiro característico no ar.
“Oi”, eu disse, olhando para ela.
Ela sorriu.
“Tá sozinha?”
“Seu irmão tá lá no quarto dele.”
“Fazendo o quê, sem você?”
Ela riu.
“Fugindo de mim, eu acho.”
Tirei a camisa, e olhei para ela.
“Eu entendo.”
Ela ainda ria.
“Ele acha que eu sou muito complicada. Vive dizendo que eu devia namorar você, e não ele.”
Fiquei desconcertado, e imaginei coisas. Mas foi um pensamento breve e inconseqüente. Olhei para ela, não havia nem a sombra de uma segunda intenção nele.
“Ele disse isso, é?”
“Disse. Ele diz isso o tempo todo.”
“Eu entendo.”
Ela olhou para mim: “Ele nunca fala de mim pra você?”
“Não”, eu disse.
“Mentira...”
Eu ri. “Bom, às vezes ele fala...”
“E o quê que ele fala?”
“Nada”, eu disse.
Ela riu. “Quer dizer que ele fala de mim, mas quando fala não diz nada?”
“É, mais ou menos isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse: “Você fuma isso, é?”
“Você não sabia? Ele nunca te contou?”
“Não”, eu disse.
“Quer que eu pare?”
“Não, não”, eu disse.
“Você já experimentou alguma vez?”
“Não.”
“Nunca teve vontade?”
“Não.”
Sentei na cama. Eu estava dizendo a verdade. Ela estava sentada no chão, sob a janela.
“Foi pra isso que você veio pro meu quarto?”
“Não”, ela disse. “Ele não se incomoda, não. Ele também fuma, sabia?”
“Não”, eu disse. “Não sabia.”
“Mas só de vez em quando. Raramente, na verdade.”
“Eu entendo.”
Achei que ela estava preocupada, por ter revelado algo supostamente terrível. Fiquei olhando para ela, amistosamente.
“Você quer que eu saia? Quer ficar sozinho?”
“Não, não”, eu disse.
Ela riu.
“O que foi?”
“Ele me disse que você gosta de ficar sozinho.”
“Ele disse isso, é?”
“Não é verdade?”
“Provavelmente é”, eu disse.
“Ele tem ciúme de você. Ele acha que eu gosto de você. Que eu estou com o irmão errado.”
“Eu entendo”, eu disse, sem olhar para ela, agora.
Ela ficou em silêncio. Depois disse: “Acho que eu sentiria por você o que eu jamais poderia sentir por ele.”
“O quê?” eu disse.
“Eu não sei.”
Olhei para ela.
“Sabe”, ela disse, num rompante, levantando-se e sentando ao meu lado, na cama.
“O quê?”
“Ele me mostrou hoje um cara que vocês conhecem.”
“Quem?”
“Roberto. Foi vizinho de vocês, na Bolívar.”
Há muito tempo eu não pensava nele, mas a recordação foi instantânea.
“Foi mesmo?”
“Foi.”
“Vocês viram ele lá?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Ele ainda mora lá”, eu disse, vagamente.
Ficamos em silêncio. Eu disse: “E o quê vocês foram fazer lá?”
Ela sorriu, brevemente.
“Ele me contou”, ela disse.
“Contou o quê?”
“Sobre o que vocês faziam, de madrugada, no quarto de vocês. O que ele descobriu que você fazia no quarto, de noite.”
Sorria, de forma encantadora. Fiz uma careta de espanto: “O quê eu fazia no quarto de noite? Alguma coisa escabrosa?”
Ela riu. Eu disse: “Ele falou sobre o robertismo?”
“Robertismo?”
“É”, eu disse. “Nós éramos os seguidores de Roberto, o Peripatético. Os robertistas. Bom nome pra uma banda de rock.”
Eu não sabia a razão, mas me sentia tomado por uma súbita necessidade de manter aquele sorriso no rosto dela.
“Ele foi nosso precursor. A partir do exemplo dele, nós criamos nosso movimento, o robertismo, que não era filosófico nem literário, mas era movimento. Nós o superamos e diversificamos, incluindo variações de percurso, robertismo a dois, com sincronização perfeita de passadas e tudo, uma série de inovações.”
O sorriso persistia, mas agora com um aspecto mecânico, cansado, quase doloroso.
“O nome do nosso movimento foi na verdade inspirado por uma observação inculta da minha mãe.”
Enquanto eu falava, ela me olhava nos olhos, que eu procurava desviar. O dela era um olhar franco e desprotegido, e não muito fácil de sustentar.
“Vocês ainda fazem isso?”
“Isso o quê?”
“Andar de um lado para outro, no quarto.”
“Não”, eu disse. “Quer dizer, muito de vez em quando. Agora cada um tem o seu quarto.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“E é diferente, agora.”
“Diferente por quê?”
“Eu não sei.”
E, depois de alguns segundos: “Acho que a gente hoje tem... menos pensamentos na cabeça. Naquela época acho que a gente sonhava mais, eu não sei. A gente nem percebia que tava andando, eu acho. Era diferente.”
Olhei para ela.
“Você tá bem? Tá triste?”
“Não.”
“Esse negócio aí não te faz bem”, eu disse, apontando para o cigarro ainda na mão dela.
Ela sorriu. Para não ter que suportar o silêncio, eu disse:
“Naquela época era tudo diferente.”
Ouvi um som familiar. Levantei, e ela teve um sobressalto.
“Aonde você vai?”
“Lugar nenhum”, eu disse.
Fui até a janela.
“Vem cá.”
Ela veio. Fiz um sinal de silêncio, e apontei para a janela de um apartamento, dois andares abaixo. Lá estava o braço magro e pelancudo, de mulher, atravessado entre as lâminas da persiana fechada, segurando uma espátula e limpando a sujeira no batente da janela. De repente o braço parou, como se soubesse que estava sendo observado, e depois retomou o serviço. Saímos da janela.
“Quem é?”
“Não sei”, eu disse. “Todo dia ela limpa o batente da janela, três, quatro, cinco vezes.”
“Mas não está sujo.”
“Mas ela limpa, mesmo assim.”
“Que loucura”, ela disse.
“E nunca levanta nem abre a persiana.”
“Você já viu ela?”
“Nunca”, eu disse, mas por um momento a imaginei com o rosto da velha que embrulhara o marido morto na lona, na Bolívar, no sétimo andar.
Estávamos de costas para a janela, observando o quarto.
“O quarto era bem diferente desse”, eu disse. “Era bem maior. E era para os dois, eu e meu irmão.”
“Isso fazia alguma diferença?” ela disse, como se soubesse, desde sempre, do que eu estava falando.
“Não sei. O quarto era maior, tinha um... apêndice, com uma janela, que dava para a Barata Ribeiro. Minha cama ficava nesse apêndice. E tinha uma cama de casal, onde meu irmão dormia.”
Era uma outra necessidade súbita e inexplicável, a de descrever minuciosamente o cenário.
“É como se o quarto fosse um L. o apêndice era a base do L.”
“E tinha uma cama de casal?”
“Tinha. A gente alugou o apartamento já mobiliado.”
Ficamos em silêncio, enquanto a imagem do quarto se tornava cada vez mais nítida em minha mente. Havia alguns quadros nas paredes, todos tendo como motivo gatos, um ou dois novelos de lã, e um onipresente pires de leite.
“Eu andava rodeando a cama de casal, fazendo um U. foi assim que ele me viu, na noite em que ele descobriu e se juntou a mim. Aí ele começou a andar junto comigo, só que ele fazia uma linha reta, junto à parede oposta à da cabeceira da cama, onde ficava o armário embutido.”
Eu queria dar uma descrição bem detalhada, queria que ela soubesse exatamente o que acontecia. Talvez para evitar que ela interpretasse mal a situação, ou para que não pensasse que havia alguma coisa errada ou patológica naquilo tudo. Eu queria ter certeza que ela estava visualizando, na mente dela, o cenário e os atores da mesma forma que eles agora apareciam em minha memória.
“Às vezes, não sei por que, ele incluía o apêndice onde ficava minha cama no percurso dele. Eu tinha que ficar esperando junto da cabeceira da cama de casal até que ele voltasse, pra não quebrar a sincronia. Pra gente não colidir no meio do caminho.”
“Por que ele fazia esse percurso maior?”
“Não sei. Às vezes ele fazia isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“Não que o meu percurso ou o dele fossem fixos. Quem chegava em casa primeiro pegava a parte da cama de casal, e o outro ficava com o da linha reta.”
Suspirei, tomado por uma terceira súbita necessidade, a de encerrar a confidência.
“Depois a coisa perdeu o encanto, eu acho.”
“Por quê?”
Dei de ombros. “Não sei”, e fiz um gesto vago com a mão.
“Acabou ficando uma coisa meio mecânica, eu não sei. É como você ser obrigado a ficar rindo, quando uma pessoa tem a mania de contar uma piada duas ou três vezes, uma atrás da outra, e você tem que ficar rindo, porque foi engraçado da primeira vez. Chega uma hora que o rosto dói, de ficar rindo forçado.”
Ela me observava, encantada. Sorria. Pensei em perguntar novamente se ela estava triste, mas não o fiz. Ela não diria, se estivesse. E eu sabia, desde sempre, que não era tristeza, era alguma outra coisa.
Imaginei que a conversa estivesse encerrada. Mas ela disse:
“Por que vocês andam hoje com menos pensamentos na cabeça?”
“Não sei”, eu disse.
“Antes vocês falavam ou ficavam calados?”
“A gente ficava calado. Quer dizer, algumas vezes ele chegava em casa de madrugada e ficava querendo me impingir as densas anedotas boêmias dele, fresquinhas ou em segunda mão, mas ele falava, falava, falava, e eu não ouvia nada. Aí ele desistia e a gente ficava calado, mesmo.”
Ela já não sorria. Mas estava, eu tinha certeza, de alguma forma encantada com tudo aquilo, com aquela inusitada confidência, como se houvesse nela algum componente extraordinário que eu já não conseguia discernir.
“É fascinante descobrir coisas assim”, ela disse.
“Que coisas?”
“Isso, esse negócio de vocês dois, sozinhos, andando juntos de um lado para outro, de madrugada, num quarto no meio dessa loucura toda... ainda existem santuários a descobrir, é isso, e vocês descobriram um.”
Dei de ombros.
“Agora já não faz diferença. O santuário já foi violado, saqueado...”
“Não”, ela disse, “não foi, não.”
Olhei para ela: “Eu pensei que você ia dizer que era melancólico, descobrir essas coisas.”
Ela não respondeu. Eu disse, rindo: “Isso pode ser tudo, menos fascinante.”
“É ruim, se for melancólico?”
“Não”, eu disse, depois de alguns segundos.
Ela disse, com vivacidade: “Pode ser melancólico, mas é fascinante, também. Se eu tivesse descoberto isso antes, eu...”
“Você ia ser uma robertista, também?”
“Por que não?”
Eu ri.
“Bom, deve ter coisa mais melancólica do que robertar, eu acho.”
Ficamos em silêncio.
“O que me deixava feliz”, eu disse, “ou mais leve, eu acho, é que... fazendo aquilo, eu...”
Ela me observava, indagadora. Como uma adolescente prestes a descobrir alguma coisa, qualquer coisa.
“... eu não sei...”
“O que você sentia?”
Olhei para ela. Eu queria responder, de alguma forma.
“Eu não sei”, eu disse, baixando a cabeça.
“Mas era bom?”
Ela parecia estar se agarrando a alguma coisa, qualquer coisa, que não conhecia, mas que eu, de alguma forma, poderia revelar a ela.
“O quê?”
“O que você sentia.”
Desviei o olhar dela.
“Era”, eu disse, mas sem outra intenção que não a de interromper a seqüência de perguntas.
“E por que você não tenta de novo?”
“Tentar o quê?”
“Andar! Pra você se sentir como se sentia na época!”
“Agora? Aqui?”
“Claro! Por que não? Eu e você, aqui, agora. Vem!”
Estendeu-me a mão. Sorria, quase radiante, e estava linda. Fiz um gesto de desânimo. Ela se aproximou de mim, mais perto do que jamais havia chegado antes, e me olhava nos olhos.
“Vem”, ela disse. “Eu e você, agora, aqui nesse quarto.”
Estava um pouco agitada, e eu não sabia como dizer não.
“Nesse quarto? Não dá, não tem espaço.”
“Claro que tem!”
Eu ri, mecanicamente, olhando em torno.
“Não. Não dá.”
“Por quê?”
Deitei-me.
“Não sei. Mas não dá.”
Deitado, eu olhava o teto, e não a via mais. Sentei-me, então, num movimento rápido, e ela voltou ao meu campo visual.
“Mônica...”
Ela não disse nada. Olhou em torno, brevemente, e então saiu do quarto. Deitei novamente. Tentei realmente lembrar o que me fazia feliz, ou mais leve, antes, quando andava de um lado para outro, dentro do quarto, de madrugada, com a cabeça cheia de pensamentos e fantasias, mas não consegui. E mesmo que conseguisse, não teria como dizê-lo a ela. Pensei em tentar na prática, agora que estava só, mas desisti. Vesti a camisa e saí de casa.
Acho que fui levado também pela idéia meio romântica de encontrar aquela garota, Cris.
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Entrei em casa, fiquei alguns segundos no escuro. O apartamento parecia a rua. Uma brisa soprara no instante em que eu abrira a porta.
Fui até o quarto do meu irmão. Lá, a janela, que dava para a rua, estava aberta, e a cortina esvoaçava do lado de fora. Recolhi a cortina e fechei a janela, fui para o meu quarto e me joguei na cama.
Senti frio, mas era como se estivesse sentindo algo de que já me esquecera. Alguma coisa me contraía a boca, em intervalos regulares. Cerrei os punhos, e abri os olhos.
Estava mais escuro que o habitual.
Batiam à porta. Eu estava banhado em suor. Fiquei sentado alguns segundos, pensando no que tinha acontecido. Senti aquela tristeza habitual, palpável. Mas era preciso abrir a porta.
O porteiro da noite e um homem que se identificou como policial estavam lá. Como as pessoas que haviam passado por mim na rua, olharam para mim, para minha camisa, com espanto. Algumas coisas foram ditas. O porteiro parecia não saber o que fazer. Era um homem simples e modesto. O polícia perguntou:
“Seu irmão está em casa?”
“Não”, eu disse.
Olhou para o porteiro da noite.
“Quer descer conosco?”
Depois de alguns segundos, percebi que a pergunta fora dirigida a mim. Olhei para o porteiro.
“Por quê?”
“Por favor”, disse o polícia.
Fechei a porta atrás de mim, sem fazer barulho, para não acordar minha mãe, que dormia no sofá.
“O que aconteceu?”, eu disse.
“É o que queremos saber, também”, disse o polícia.
Olhei para ele. O pensamento dele ia numa direção, o meu em outra. Olhei para o porteiro:
“Que foi que meu irmão fez?”
O polícia pegou em meu ombro: “Seu irmão?”
Desvencilhei-me dele.
“Que foi que meu irmão fez?” eu repeti, olhando para o porteiro.
O porteiro me olhava, com tristeza. Eu nunca havia reparado muito nele. Encostei a cabeça na parede do elevador. O polícia me olhava, olhava minha camisa.
“Cara, eu não acredito”, eu disse. “Por que ele foi fazer um troço desses? Por que ele tinha que sair do percurso?”
“Percurso? Que percurso?” disse o polícia.
Chegamos à calçada. A aglomeração parecia não haver aumentado muito, desde o momento em que eu havia passado por ali, ao chegar em casa. Havia um rabecão estacionado ali perto.
Abrimos caminho entre os curiosos. O polícia me pegou pelo braço, e me fez inclinar para baixo, na direção do corpo.
“Conhece?”
Olhei para ela, os cabelos ruivos enegrecidos pela poça de sangue.
Desvencilhei-me novamente dele, e recuei alguns passos.
“Era a namorada do seu irmão, não?” perguntou o polícia.
Olhou para mim, e disse alguma coisa ao porteiro. Eu os vi falando, mas não ouvi nada.
“Será que você tem alguma idéia de como ela veio parar aqui?”
Olhei para ele. Não havia como responder. Ele me olhou, olhou minha camisa, e riu: “Vamos.”
Lembrei então meu aspecto, a camisa manchada. Olhei para ele:
“O senhor não está pensando que...”
“Eu não tô pensando nada, garoto.”
Estavam colocando o corpo no rabecão. Paramos para olhar.
“Vamos”, disse o polícia.
A delegacia era o lugar deprimente que se podia esperar, mas nada do que vi lá me causou maior impressão. Meu irmão chegou quase uma hora depois, e depusemos ao delegado por um tempo. Meu irmão havia discutido com Mônica, antes e depois de minha conversa com ela, mas nada que já não houvesse acontecido antes. Declarou que nunca havia notado qualquer impulso daquela natureza nela. O delegado só insistiu em saber o motivo que o levara a sair de casa e deixá-la sozinha, mas ele alegou não saber que eu também havia saído, e o delegado não insistiu mais. Os pais dela foram avisados, mas nenhum dos dois apareceu na delegacia, pelo menos enquanto eu estive por lá.
Minha aparência também exigiu algumas explicações. Por fim, fizeram um curativo em meu nariz, e alguém me deu uma camisa branca, de malha, com a inscrição Polícia Civil nas costas.
Quando saí de lá, a claridade da rua bateu em cheio nos meus olhos, e eu me senti como se houvesse acabado de desembarcar em algum país estrangeiro, em outra estação do ano, diferente, que eu não conhecia.
Nos separamos, eu e meu irmão. Fiquei na rua, sem saber o que fazer. Fui ao cinema.
Só voltei para casa à noite. Minha mãe dormia no sofá, como de hábito, com a televisão ligada. Desliguei o aparelho, e fiquei alguns instantes em pé, no meio da sala.
Pela porta entreaberta do quarto do meu irmão uma sombra passava, em intervalos regulares.
Fui para o meu quarto, e fechei a porta. O quarto era pequeno, e meus pensamentos eram poucos. Coloquei a cama atravessada no meio do quarto, com a cabeceira junto à parede oposta a da janela, formando um U, e comecei a andar em torno dela. Depois de alguns minutos, eu já não sabia onde estava, e já não tinha nenhum pensamento na cabeça.