quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O que se seguiu...

MÔNICA

Ouça Trois Gnossiennes de Erik Satie ao ler este texto

Eles vinham pela Bolívar. Antes de atravessar a Barata Ribeiro, ele parou, próximo a uma banca de jornais.
“Que foi?”
“Nada”, ele disse.
“O sinal tá aberto, vamos atravessar logo”, ela disse.
“Olha ali do outro lado.”
“O quê?”
“Ali, aquele cara.”
Ela olhou para o outro lado da rua. Um homem alto, magro e calvo, de pele bem branca, andava de um lado para o outro. Vinha até o hidrante da esquina e voltava até a portaria do prédio para onde eles se dirigiam. O homem levava um cigarro à boca, em intervalos regulares.
“Quem é ele? Você conhece?”
“Ele mora nesse prédio onde eu morei.”
“Mas você conhece ele?”
“Mais ou menos.”
“Ele já deve ter percebido que a gente tá observando ele.”
“Não”, ele disse. “Não...”
“Como é que você sabe?”
“Eu não sabia”, continuou ele, “que ele descia a essa hora. Quer dizer, eu nunca tinha visto ele na rua a essa hora.”.
“Como assim? Ele faz isso sempre?”
“Isso o quê?”
“Ficar assim, andando de um lado para o outro, na rua.”
Ele riu.
“O quê foi?” ela disse.
“Nada, não. Meu irmão não gostava que se falasse assim.”
“Assim como?”
“Andar de um lado para o outro. Como se fosse coisa de maluco.”
Ela riu, também.
“Mas não é o que ele está fazendo?”
“Aparentemente, sim.”
Ele a apertou nos braços e beijou-a na boca. Ela se afastou dele.
“Explica isso direito, vai.”
“Não, não é nada, não. Esquece.”
Ela estava parada, e resistia à mão dele, que a puxava para que atravessassem a rua.
“Que foi? Tá com medo dele?”
“Vamos pra sua casa”, ela disse, de repente.
“Minha casa? Por quê?”
Ele soltou a mão dela.
“Meu irmão deve estar em casa.”
Começaram a atravessar a rua. Ela havia dado a mão a ele. Passaram ao lado do homem. Como já soubesse o que tinha a fazer, ela foi até a porta da garagem. Voltou-se para observar o homem, discretamente. O namorado voltou.
“Vamos.”
Desceram a rampa da garagem, e se dirigiram ao elevador de serviço.
“Pegou um com mobília?”
“Não”, ele disse, e olhou para ela. “Ah, Mônica, qual é? Com mobília o Batata cobra mais caro. Eu tô duro.”
Ficaram em silêncio.
“Vai ficar com essa cara, é? Só por causa disso?”
Ela fez um gesto com a mão, para que ele parasse. Saíram do elevador. De repente ele parou e deteve-a pelo braço:
“Quer ir embora? Se você quiser a gente sai daqui agora mesmo.”
Ela se soltou, e seguiu em frente.
“Qual é o apartamento?”
“É só falar, Mônica. Quer ir embora?”
“Fala baixo”, ela disse. “Vai acordar todo mundo.”
“Ah, que se foda todo mundo.”
Ela esperou alguns segundos, e perguntou novamente qual era o apartamento, puxando-o pelo braço. A resistência foi diminuindo, e eles seguiram em frente. Ele girou a chave na fechadura, com cuidado, e abriu a porta lentamente, prevenindo possíveis rangidos.
“Entra”, ele disse.
Ela entrou. Com a porta ainda aberta, um breve clarão vindo do corredor iluminou a sala, e ela procurou localizar-se no apartamento. Logo, a janela tornou-se o único ponto de referência possível. Ficou parada, em pé, no meio da sala vazia, e ouviu o ruído da porta sendo fechada.
Sentiu um leve arrepio quando ele tocou-lhe os ombros e beijou-lhe a nuca. Foi até a janela e olhou para baixo.
“Sai da janela, Mônica!”
“A janela do quarto dá pra Bolívar?”
“Eu não sei. Eu não morava nessa coluna. Acho que dá. Por quê?”
Ela entrou pelo apartamento, já mais habituada ao escuro.
Ele a acompanhou com os olhos, sem entender. O toalete, pensou. Começou a desabotoar a camisa. Ela não voltou da pequena incursão, e ele parou de despir-se e foi procurá-la. Encontrou-a num dos quartos, debruçada na janela.
“Sai da janela, Mônica! Alguém pode te ver, e a gente acaba complicando a vida do Batata!”
Ela fez um sinal para que ele se aproximasse.
“Ele ainda está lá”, ela disse.
Ele permaneceu parado.
“Ele quem?”
“Aquele cara, lá embaixo.”
“Ah, sei. E daí? Esquece ele.”
Ela se virou para ele: “Como é o nome dele?”.
“Roberto”, ele disse.
Ela se aproximou dele, acariciou-lhe o peito, beijando-o suavemente.
“Por que você briga comigo?”
“Eu não brigo com você. Vamos. A gente tá perdendo tempo.”
“Por que ele faz isso?”
Estavam abraçados.
“Do quê que você tá falando?”
“Por que aquele cara fica na rua, andando de um lado para o outro?”
“Eu não sei, Mônica”, ele disse.
“Ele é louco?”
Ele riu, e relaxou um pouco.
“Eu não sei. Quer dizer, acho que é. Ele uma vez disse pra minha mãe que o irmão dele é que é o verdadeiro louco da família. E ele estava falando sério.”
“Sua mãe conhece ele? Conversava com ele?”
“Conversava.”
Ela se afastou um pouco, para olhar para ele. Estava rindo, e disse:
“E é verdade?”
“O quê?”
“Que o irmão dele é louco?”
“Não sei. Por quê?”
“Porque se ele não é o maluco da família, e fica de noite na rua andando de um lado para o outro daquele jeito, imagina o que não faz o irmão dele, que é o louco de verdade.”
Ele a abraçou novamente, um abraço apertado e carinhoso. “É verdade. Mas que importância tem isso?”
“Me fala sobre ele. Por que ele ficou louco? Ou ele nasceu assim?”
Ele fez um leve gesto de impaciência.
“Eu não sei, Mônica. Eu não sei. Quando eu vim morar aqui, ele já tinha esse hábito de ficar na rua, andando de um lado para o outro. Eu só não sabia que ele ficava na rua até essa hora. Ele já era maluco quando eu cheguei aqui. Agora, eu não sei se ele já nasceu assim ou se ficou assim depois. Eu nunca troquei uma palavra com ele.”
“Nunca?”
“Nunca. Quer dizer...”.
Afastou-se um pouco dela.
“Mônica, a gente tá perdendo tempo...”
“Conta, vai. Conta. Você falou com ele alguma vez?”
“Um dia eu desci o elevador com ele. Eu tinha uns dezesseis anos, eu acho, e tava indo pra escola. Sempre que a gente ia pegar o elevador e via que ele estava lá, a gente voltava, inventava uma desculpa na cabeça, ou fingia que tinha esquecido alguma coisa em casa, só pra não ficar com ele no elevador. Mas naquele dia eu não fiz isso. Eu tava com um caderno debaixo do braço, aberto numa das páginas. Eu fiquei encostado na parede do elevador, me cagando de medo, sei lá por que. Aí ele chegou perto de mim, apontou pro caderno e disse: ‘Química? ’ Aí eu disse, ‘é’, e aí ele começou a rir bem alto, aquelas risadas de maluco que a gente vê nos filmes... igualzinha. Aí eu olhei pra ele e dei o sorriso mais sem graça que eu já dei na vida. E olha que eu já dei uma porrada de sorriso sem graça na vida. Mas esse foi o mais... foi mesmo.”
Ficou alguns segundos em silêncio, e depois continuou:
“E enquanto ele dava risada, eu olhei a cara dele. Ele não tinha um dente na boca.”
Olhou para ela na penumbra, e era angustiante não poder certificar-se de que havia compaixão no rosto dela.
“Dizem que o irmão dele tinha mandado arrancar os dentes dele, pra que ele não se machucasse. Dizem também que as paredes do quarto dele são acolchoadas, pelo mesmo motivo.”
Ele se dirigiu à porta do quarto.
“Dizem que o irmão dele”, continuou, sem olhar para Mônica, “tentou internar ele, e tudo, depois que a mãe deles morreu. Não queria ficar com a responsabilidade. Mas ele começou a. deixar de comer, não fazia nada, não descia mais pra rua, ficou assim...”
Encurvou o dedo indicador, na penumbra, sem se importar se ela via ou não.
“E aí?” perguntou ela, que o havia seguido.
“Aí o irmão desistiu de internar ele.”
Ainda estava entre a soleira da porta e o corredor que levava à sala. Depois de alguns instantes de silêncio, ela também saiu do quarto.
“Vem”, ele disse, estendendo a mão para ela.
Sem tomar a mão dele, ela o seguiu até a sala. Despiu-se. Sentou-se na posição do Buda, e mais uma vez estendeu a mão.
“Vem.”
Ela despiu-se lentamente, enquanto ele permanecia alguns segundos com a mão estendida.
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De súbito, ela se afastou dele.
“Vamos pra sua casa”, ela disse.
Ele a encarou ainda uma vez, incrédulo. Afastou-se dela, inclinando o tronco para trás e apoiando os cotovelos no chão.
“Mônica...”
“Por favor”, ela disse, com doçura. “Eu não quero mais ficar aqui.”
Levantou, e começou a vestir-se, rapidamente.
“Eu não sei”, ela disse, “que necessidade a gente tem de ficar vindo aqui.”
“Eu não posso te levar lá pra casa, toda vez que a gente quiser...”
“É só pra isso que você me quer?”
Ele a observava, desconcertado.
“Porra, Mônica, não é só pra isso que eu te quero! Vai começar de novo?”
Ele levantou, realmente nervoso.
“Minha casa não é motel, porra! Mora gente lá!”
Ela também estava nervosa.
“Não vejo porque esse prurido todo”, ela disse. “Tua mãe dorme o tempo todo, e teu irmão não tá nem aí pro que a gente faz ou deixa de fazer. E foi você que me levou lá pra isso, a primeira vez”
“É por causa dele que você quer ir pra lá, não é?”
“O quê?”
“Por que você não abre o jogo?”
Ela o encarou: “Se você soubesse como você está sendo...”
“Ah, sem essa, Mônica”, ele disse.
“Vai ter crise de ciúme agora, é?”
Entreolharam-se por um instante. Ela disse: “Não estraga tudo que...”
“Estragar o quê? O que já tá estragado?”
Ficaram apartados, distantes, cada um a sós consigo mesmo.
“Por que você não abre o jogo logo? Você gosta dele? Tudo bem, eu não vou te odiar por isso. Eu posso ser tudo, menos irracional. E não sou burro, também. Posso não ser um intelectual como vocês dois, mas não sou burro. Eu sei quando sou demais.”
Ela não disse nada.
“Vai, Mônica, fala alguma coisa. Diz que gosta dele, e a gente acaba tudo agora.”
“Você está sendo ridículo.”
Estavam ambos vestidos. Entreolharam-se novamente, como se perguntassem um ao outro o que os mantinha ali, ainda.
Saíram do apartamento em silêncio, e ele bateu a porta. Ela fez um gesto para que ele não fizesse barulho, mas ele não deu atenção.
Desceram pelo elevador, e saíram pela garagem. Ele deixou a chave na mão do porteiro, e, andando lado a lado, acompanharam Roberto em sua viagem ao hidrante da esquina.
“Tá indo pra onde?”, ela disse, quando percebeu que ele se preparava para atravessar a Barata Ribeiro.
Ele parou, já sobre a faixa de pedestres.
“Pra casa”, ele disse.
“Vamos andando”, ela disse.
Ele suspirou.
“Você quer mesmo ir lá pra casa?”
“Vamos”, ela disse, estendendo a mão para ele.
“Quer encontrar ele, é?”
Mas já não havia raiva na voz dele. Ela disse: “Se ele estiver lá, eu vou falar com ele. Dizer boa noite.”
Ele voltou ao passeio, ignorando a mão estendida dela. Começou a andar afastado, sempre alguns passos à frente.
Alguns metros depois, ela disse, rindo: “Quer parar com isso? Fica do meu lado, vai.”
Ele permaneceu com a cara amarrada, alguns metros à frente.
“Ei!”, ela disse, parando e puxando-o pela manga da camisa.
Ele se voltou. Ela então deu as costas a ele, e caminhou em sentido contrário, ereta, depois deu meia-volta e caminhou na direção dele, levando à boca um cigarro imaginário, num movimento sincronizado e metódico. Estava rindo.
"Deixa de palhaçada", disse ele.
Ela pegou o braço dele, ainda sorridente.
“É sério”, disse ela. “Eu gostei do sistema daquele cara. Andar de um lado para o outro. Deve ser um barato.”
Ficou em silêncio, pensativa.
“Por que seu irmão não gosta que se fale assim?”
“A gente não tá indo lá pra minha casa? Lá você pergunta a ele.”
Ela ignorou a grosseria.
“E se ele não estiver lá?”
“Ele nunca sai de casa.”
“Isso não é verdade. Vai, diz. Por que ele não gosta que a gente fale, andar de um lado para o outro? Tem outro nome pra isso?”
“Robertar”, ele disse, em voz baixa e olhando para o outro lado da rua, como se nutrisse a esperança que ela, não ouvindo direito, perdesse o interesse por aquele assunto.
“Robertar!” ela disse, rindo. “Mas é claro! Roberto, robertar!”
Ria agora com franqueza, divertida. E o encanto daquilo desanuviou um pouco o rosto dele, e ele descobriu-se disposto a falar.
“Foi ele mesmo quem inventou o nome?”
“Não”, ele disse.
“Quem foi? Seu irmão?”
“Minha mãe.”
Ela não escondeu a surpresa: “Sua mãe?!”
Ele suspirou.
“Um dia ela descobriu que eu e meu irmão, a gente ficava de madrugada andando de um lado para o outro, no nosso quarto, e perguntou o quê a gente tava fazendo. A gente não respondeu, e aí ela perguntou se a gente tava robertando. Foi nesse prédio mesmo, a gente morava no 4º andar.”
Ficaram em silêncio, e ele estranhou o silêncio dela, que não ria mais.
“Vocês ficavam andando de um lado para outro, no quarto de vocês, de madrugada, juntos?”
Ele fez que sim, com a cabeça.
“Por que vocês faziam isso?”
“Não sei”, ele disse. “Um dia eu cheguei em casa de madrugada, entrei no quarto e ele estava lá, andando de um lado para outro.”
“E aí?”
“Aí eu perguntei o que ele estava fazendo, e ele disse, nada.”
Ficaram em silêncio, novamente.
“E aí?”
“E aí? Não sei, Mônica. Não sei. Acho que eu comecei a andar, junto com ele.”
Caminhavam agora de mãos dadas.
“Vocês ficaram andando juntos?”
“É”, ele disse.
Experimentava novamente uma sensação de vergonha, por ter contado aquilo.
“Negócio ridículo, não?”
“Não”, ela disse, e repetiu, com vivacidade: “Não.”
“Tem tempo que a gente não faz mais isso.”
Era como se houvesse acabado de revelar, contando aquela história, um segredo profundamente íntimo, o único que jamais tivera.
“Por quê?”
“Por que o quê?”
“Por que vocês não fazem mais isso?”
“Não sei”, ele disse, depois de pensar alguns segundos.
Dali até a Prado Júnior nada mais foi dito. No apartamento tudo estava quieto. A mãe dormia no sofá, e a porta do outro quarto estava encostada. Eles foram direto ao quarto dele.
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Entrei no quarto. Havia um cheiro característico no ar.
“Oi”, eu disse, olhando para ela.
Ela sorriu.
“Tá sozinha?”
“Seu irmão tá lá no quarto dele.”
“Fazendo o quê, sem você?”
Ela riu.
“Fugindo de mim, eu acho.”
Tirei a camisa, e olhei para ela.
“Eu entendo.”
Ela ainda ria.
“Ele acha que eu sou muito complicada. Vive dizendo que eu devia namorar você, e não ele.”
Fiquei desconcertado, e imaginei coisas. Mas foi um pensamento breve e inconseqüente. Olhei para ela, não havia nem a sombra de uma segunda intenção nele.
“Ele disse isso, é?”
“Disse. Ele diz isso o tempo todo.”
“Eu entendo.”
Ela olhou para mim: “Ele nunca fala de mim pra você?”
“Não”, eu disse.
“Mentira...”
Eu ri. “Bom, às vezes ele fala...”
“E o quê que ele fala?”
“Nada”, eu disse.
Ela riu. “Quer dizer que ele fala de mim, mas quando fala não diz nada?”
“É, mais ou menos isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse: “Você fuma isso, é?”
“Você não sabia? Ele nunca te contou?”
“Não”, eu disse.
“Quer que eu pare?”
“Não, não”, eu disse.
“Você já experimentou alguma vez?”
“Não.”
“Nunca teve vontade?”
“Não.”
Sentei na cama. Eu estava dizendo a verdade. Ela estava sentada no chão, sob a janela.
“Foi pra isso que você veio pro meu quarto?”
“Não”, ela disse. “Ele não se incomoda, não. Ele também fuma, sabia?”
“Não”, eu disse. “Não sabia.”
“Mas só de vez em quando. Raramente, na verdade.”
“Eu entendo.”
Achei que ela estava preocupada, por ter revelado algo supostamente terrível. Fiquei olhando para ela, amistosamente.
“Você quer que eu saia? Quer ficar sozinho?”
“Não, não”, eu disse.
Ela riu.
“O que foi?”
“Ele me disse que você gosta de ficar sozinho.”
“Ele disse isso, é?”
“Não é verdade?”
“Provavelmente é”, eu disse.
“Ele tem ciúme de você. Ele acha que eu gosto de você. Que eu estou com o irmão errado.”
“Eu entendo”, eu disse, sem olhar para ela, agora.
Ela ficou em silêncio. Depois disse: “Acho que eu sentiria por você o que eu jamais poderia sentir por ele.”
“O quê?” eu disse.
“Eu não sei.”
Olhei para ela.
“Sabe”, ela disse, num rompante, levantando-se e sentando ao meu lado, na cama.
“O quê?”
“Ele me mostrou hoje um cara que vocês conhecem.”
“Quem?”
“Roberto. Foi vizinho de vocês, na Bolívar.”
Há muito tempo eu não pensava nele, mas a recordação foi instantânea.
“Foi mesmo?”
“Foi.”
“Vocês viram ele lá?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Ele ainda mora lá”, eu disse, vagamente.
Ficamos em silêncio. Eu disse: “E o quê vocês foram fazer lá?”
Ela sorriu, brevemente.
“Ele me contou”, ela disse.
“Contou o quê?”
“Sobre o que vocês faziam, de madrugada, no quarto de vocês. O que ele descobriu que você fazia no quarto, de noite.”
Sorria, de forma encantadora. Fiz uma careta de espanto: “O quê eu fazia no quarto de noite? Alguma coisa escabrosa?”
Ela riu. Eu disse: “Ele falou sobre o robertismo?”
“Robertismo?”
“É”, eu disse. “Nós éramos os seguidores de Roberto, o Peripatético. Os robertistas. Bom nome pra uma banda de rock.”
Eu não sabia a razão, mas me sentia tomado por uma súbita necessidade de manter aquele sorriso no rosto dela.
“Ele foi nosso precursor. A partir do exemplo dele, nós criamos nosso movimento, o robertismo, que não era filosófico nem literário, mas era movimento. Nós o superamos e diversificamos, incluindo variações de percurso, robertismo a dois, com sincronização perfeita de passadas e tudo, uma série de inovações.”
O sorriso persistia, mas agora com um aspecto mecânico, cansado, quase doloroso.
“O nome do nosso movimento foi na verdade inspirado por uma observação inculta da minha mãe.”
Enquanto eu falava, ela me olhava nos olhos, que eu procurava desviar. O dela era um olhar franco e desprotegido, e não muito fácil de sustentar.
“Vocês ainda fazem isso?”
“Isso o quê?”
“Andar de um lado para outro, no quarto.”
“Não”, eu disse. “Quer dizer, muito de vez em quando. Agora cada um tem o seu quarto.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“E é diferente, agora.”
“Diferente por quê?”
“Eu não sei.”
E, depois de alguns segundos: “Acho que a gente hoje tem... menos pensamentos na cabeça. Naquela época acho que a gente sonhava mais, eu não sei. A gente nem percebia que tava andando, eu acho. Era diferente.”
Olhei para ela.
“Você tá bem? Tá triste?”
“Não.”
“Esse negócio aí não te faz bem”, eu disse, apontando para o cigarro ainda na mão dela.
Ela sorriu. Para não ter que suportar o silêncio, eu disse:
“Naquela época era tudo diferente.”
Ouvi um som familiar. Levantei, e ela teve um sobressalto.
“Aonde você vai?”
“Lugar nenhum”, eu disse.
Fui até a janela.
“Vem cá.”
Ela veio. Fiz um sinal de silêncio, e apontei para a janela de um apartamento, dois andares abaixo. Lá estava o braço magro e pelancudo, de mulher, atravessado entre as lâminas da persiana fechada, segurando uma espátula e limpando a sujeira no batente da janela. De repente o braço parou, como se soubesse que estava sendo observado, e depois retomou o serviço. Saímos da janela.
“Quem é?”
“Não sei”, eu disse. “Todo dia ela limpa o batente da janela, três, quatro, cinco vezes.”
“Mas não está sujo.”
“Mas ela limpa, mesmo assim.”
“Que loucura”, ela disse.
“E nunca levanta nem abre a persiana.”
“Você já viu ela?”
“Nunca”, eu disse, mas por um momento a imaginei com o rosto da velha que embrulhara o marido morto na lona, na Bolívar, no sétimo andar.
Estávamos de costas para a janela, observando o quarto.
“O quarto era bem diferente desse”, eu disse. “Era bem maior. E era para os dois, eu e meu irmão.”
“Isso fazia alguma diferença?” ela disse, como se soubesse, desde sempre, do que eu estava falando.
“Não sei. O quarto era maior, tinha um... apêndice, com uma janela, que dava para a Barata Ribeiro. Minha cama ficava nesse apêndice. E tinha uma cama de casal, onde meu irmão dormia.”
Era uma outra necessidade súbita e inexplicável, a de descrever minuciosamente o cenário.
“É como se o quarto fosse um L. o apêndice era a base do L.”
“E tinha uma cama de casal?”
“Tinha. A gente alugou o apartamento já mobiliado.”
Ficamos em silêncio, enquanto a imagem do quarto se tornava cada vez mais nítida em minha mente. Havia alguns quadros nas paredes, todos tendo como motivo gatos, um ou dois novelos de lã, e um onipresente pires de leite.
“Eu andava rodeando a cama de casal, fazendo um U. foi assim que ele me viu, na noite em que ele descobriu e se juntou a mim. Aí ele começou a andar junto comigo, só que ele fazia uma linha reta, junto à parede oposta à da cabeceira da cama, onde ficava o armário embutido.”
Eu queria dar uma descrição bem detalhada, queria que ela soubesse exatamente o que acontecia. Talvez para evitar que ela interpretasse mal a situação, ou para que não pensasse que havia alguma coisa errada ou patológica naquilo tudo. Eu queria ter certeza que ela estava visualizando, na mente dela, o cenário e os atores da mesma forma que eles agora apareciam em minha memória.
“Às vezes, não sei por que, ele incluía o apêndice onde ficava minha cama no percurso dele. Eu tinha que ficar esperando junto da cabeceira da cama de casal até que ele voltasse, pra não quebrar a sincronia. Pra gente não colidir no meio do caminho.”
“Por que ele fazia esse percurso maior?”
“Não sei. Às vezes ele fazia isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“Não que o meu percurso ou o dele fossem fixos. Quem chegava em casa primeiro pegava a parte da cama de casal, e o outro ficava com o da linha reta.”
Suspirei, tomado por uma terceira súbita necessidade, a de encerrar a confidência.
“Depois a coisa perdeu o encanto, eu acho.”
“Por quê?”
Dei de ombros. “Não sei”, e fiz um gesto vago com a mão.
“Acabou ficando uma coisa meio mecânica, eu não sei. É como você ser obrigado a ficar rindo, quando uma pessoa tem a mania de contar uma piada duas ou três vezes, uma atrás da outra, e você tem que ficar rindo, porque foi engraçado da primeira vez. Chega uma hora que o rosto dói, de ficar rindo forçado.”
Ela me observava, encantada. Sorria. Pensei em perguntar novamente se ela estava triste, mas não o fiz. Ela não diria, se estivesse. E eu sabia, desde sempre, que não era tristeza, era alguma outra coisa.
Imaginei que a conversa estivesse encerrada. Mas ela disse:
“Por que vocês andam hoje com menos pensamentos na cabeça?”
“Não sei”, eu disse.
“Antes vocês falavam ou ficavam calados?”
“A gente ficava calado. Quer dizer, algumas vezes ele chegava em casa de madrugada e ficava querendo me impingir as densas anedotas boêmias dele, fresquinhas ou em segunda mão, mas ele falava, falava, falava, e eu não ouvia nada. Aí ele desistia e a gente ficava calado, mesmo.”
Ela já não sorria. Mas estava, eu tinha certeza, de alguma forma encantada com tudo aquilo, com aquela inusitada confidência, como se houvesse nela algum componente extraordinário que eu já não conseguia discernir.
“É fascinante descobrir coisas assim”, ela disse.
“Que coisas?”
“Isso, esse negócio de vocês dois, sozinhos, andando juntos de um lado para outro, de madrugada, num quarto no meio dessa loucura toda... ainda existem santuários a descobrir, é isso, e vocês descobriram um.”
Dei de ombros.
“Agora já não faz diferença. O santuário já foi violado, saqueado...”
“Não”, ela disse, “não foi, não.”
Olhei para ela: “Eu pensei que você ia dizer que era melancólico, descobrir essas coisas.”
Ela não respondeu. Eu disse, rindo: “Isso pode ser tudo, menos fascinante.”
“É ruim, se for melancólico?”
“Não”, eu disse, depois de alguns segundos.
Ela disse, com vivacidade: “Pode ser melancólico, mas é fascinante, também. Se eu tivesse descoberto isso antes, eu...”
“Você ia ser uma robertista, também?”
“Por que não?”
Eu ri.
“Bom, deve ter coisa mais melancólica do que robertar, eu acho.”
Ficamos em silêncio.
“O que me deixava feliz”, eu disse, “ou mais leve, eu acho, é que... fazendo aquilo, eu...”
Ela me observava, indagadora. Como uma adolescente prestes a descobrir alguma coisa, qualquer coisa.
“... eu não sei...”
“O que você sentia?”
Olhei para ela. Eu queria responder, de alguma forma.
“Eu não sei”, eu disse, baixando a cabeça.
“Mas era bom?”
Ela parecia estar se agarrando a alguma coisa, qualquer coisa, que não conhecia, mas que eu, de alguma forma, poderia revelar a ela.
“O quê?”
“O que você sentia.”
Desviei o olhar dela.
“Era”, eu disse, mas sem outra intenção que não a de interromper a seqüência de perguntas.
“E por que você não tenta de novo?”
“Tentar o quê?”
“Andar! Pra você se sentir como se sentia na época!”
“Agora? Aqui?”
“Claro! Por que não? Eu e você, aqui, agora. Vem!”
Estendeu-me a mão. Sorria, quase radiante, e estava linda. Fiz um gesto de desânimo. Ela se aproximou de mim, mais perto do que jamais havia chegado antes, e me olhava nos olhos.
“Vem”, ela disse. “Eu e você, agora, aqui nesse quarto.”
Estava um pouco agitada, e eu não sabia como dizer não.
“Nesse quarto? Não dá, não tem espaço.”
“Claro que tem!”
Eu ri, mecanicamente, olhando em torno.
“Não. Não dá.”
“Por quê?”
Deitei-me.
“Não sei. Mas não dá.”
Deitado, eu olhava o teto, e não a via mais. Sentei-me, então, num movimento rápido, e ela voltou ao meu campo visual.
“Mônica...”
Ela não disse nada. Olhou em torno, brevemente, e então saiu do quarto. Deitei novamente. Tentei realmente lembrar o que me fazia feliz, ou mais leve, antes, quando andava de um lado para outro, dentro do quarto, de madrugada, com a cabeça cheia de pensamentos e fantasias, mas não consegui. E mesmo que conseguisse, não teria como dizê-lo a ela. Pensei em tentar na prática, agora que estava só, mas desisti. Vesti a camisa e saí de casa.
Acho que fui levado também pela idéia meio romântica de encontrar aquela garota, Cris.
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Entrei em casa, fiquei alguns segundos no escuro. O apartamento parecia a rua. Uma brisa soprara no instante em que eu abrira a porta.
Fui até o quarto do meu irmão. Lá, a janela, que dava para a rua, estava aberta, e a cortina esvoaçava do lado de fora. Recolhi a cortina e fechei a janela, fui para o meu quarto e me joguei na cama.
Senti frio, mas era como se estivesse sentindo algo de que já me esquecera. Alguma coisa me contraía a boca, em intervalos regulares. Cerrei os punhos, e abri os olhos.
Estava mais escuro que o habitual.
Batiam à porta. Eu estava banhado em suor. Fiquei sentado alguns segundos, pensando no que tinha acontecido. Senti aquela tristeza habitual, palpável. Mas era preciso abrir a porta.
O porteiro da noite e um homem que se identificou como policial estavam lá. Como as pessoas que haviam passado por mim na rua, olharam para mim, para minha camisa, com espanto. Algumas coisas foram ditas. O porteiro parecia não saber o que fazer. Era um homem simples e modesto. O polícia perguntou:
“Seu irmão está em casa?”
“Não”, eu disse.
Olhou para o porteiro da noite.
“Quer descer conosco?”
Depois de alguns segundos, percebi que a pergunta fora dirigida a mim. Olhei para o porteiro.
“Por quê?”
“Por favor”, disse o polícia.
Fechei a porta atrás de mim, sem fazer barulho, para não acordar minha mãe, que dormia no sofá.
“O que aconteceu?”, eu disse.
“É o que queremos saber, também”, disse o polícia.
Olhei para ele. O pensamento dele ia numa direção, o meu em outra. Olhei para o porteiro:
“Que foi que meu irmão fez?”
O polícia pegou em meu ombro: “Seu irmão?”
Desvencilhei-me dele.
“Que foi que meu irmão fez?” eu repeti, olhando para o porteiro.
O porteiro me olhava, com tristeza. Eu nunca havia reparado muito nele. Encostei a cabeça na parede do elevador. O polícia me olhava, olhava minha camisa.
“Cara, eu não acredito”, eu disse. “Por que ele foi fazer um troço desses? Por que ele tinha que sair do percurso?”
“Percurso? Que percurso?” disse o polícia.
Chegamos à calçada. A aglomeração parecia não haver aumentado muito, desde o momento em que eu havia passado por ali, ao chegar em casa. Havia um rabecão estacionado ali perto.
Abrimos caminho entre os curiosos. O polícia me pegou pelo braço, e me fez inclinar para baixo, na direção do corpo.
“Conhece?”
Olhei para ela, os cabelos ruivos enegrecidos pela poça de sangue.
Desvencilhei-me novamente dele, e recuei alguns passos.
“Era a namorada do seu irmão, não?” perguntou o polícia.
Olhou para mim, e disse alguma coisa ao porteiro. Eu os vi falando, mas não ouvi nada.
“Será que você tem alguma idéia de como ela veio parar aqui?”
Olhei para ele. Não havia como responder. Ele me olhou, olhou minha camisa, e riu: “Vamos.”
Lembrei então meu aspecto, a camisa manchada. Olhei para ele:
“O senhor não está pensando que...”
“Eu não tô pensando nada, garoto.”
Estavam colocando o corpo no rabecão. Paramos para olhar.
“Vamos”, disse o polícia.
A delegacia era o lugar deprimente que se podia esperar, mas nada do que vi lá me causou maior impressão. Meu irmão chegou quase uma hora depois, e depusemos ao delegado por um tempo. Meu irmão havia discutido com Mônica, antes e depois de minha conversa com ela, mas nada que já não houvesse acontecido antes. Declarou que nunca havia notado qualquer impulso daquela natureza nela. O delegado só insistiu em saber o motivo que o levara a sair de casa e deixá-la sozinha, mas ele alegou não saber que eu também havia saído, e o delegado não insistiu mais. Os pais dela foram avisados, mas nenhum dos dois apareceu na delegacia, pelo menos enquanto eu estive por lá.
Minha aparência também exigiu algumas explicações. Por fim, fizeram um curativo em meu nariz, e alguém me deu uma camisa branca, de malha, com a inscrição Polícia Civil nas costas.
Quando saí de lá, a claridade da rua bateu em cheio nos meus olhos, e eu me senti como se houvesse acabado de desembarcar em algum país estrangeiro, em outra estação do ano, diferente, que eu não conhecia.
Nos separamos, eu e meu irmão. Fiquei na rua, sem saber o que fazer. Fui ao cinema.
Só voltei para casa à noite. Minha mãe dormia no sofá, como de hábito, com a televisão ligada. Desliguei o aparelho, e fiquei alguns instantes em pé, no meio da sala.
Pela porta entreaberta do quarto do meu irmão uma sombra passava, em intervalos regulares.
Fui para o meu quarto, e fechei a porta. O quarto era pequeno, e meus pensamentos eram poucos. Coloquei a cama atravessada no meio do quarto, com a cabeceira junto à parede oposta a da janela, formando um U, e comecei a andar em torno dela. Depois de alguns minutos, eu já não sabia onde estava, e já não tinha nenhum pensamento na cabeça.

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