quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Anos 80, zona sul do Rio...tudo isso deve ter acontecido

A GRANDE MANCHA VERMELHA Ela chegou na hora de sempre. Começou a tirar a roupa ainda na sala, ligou a televisão e sentou no sofá, como fazia todos os dias, quase deitada, com as pernas esticadas, as coxas grossas, a calcinha cavada, formando um v enorme.
Eu tinha um daqueles binóculos que se fechavam como uma carteira de bolso. Meu primo estava comigo. Provavelmente vinha lá da Bolívar só para ver a garota. Quando ela saiu da sala nós saímos da janela, e ficamos alguns instantes em silêncio.
“Será que ela já voltou?”
“Não sei”, ele disse. Fez um gesto de desânimo, pressionando os olhos com os dedos, e sussurrou: “Cadê essa puta, porra?!”
Rimos juntos, baixinho, no escuro. Ele disse:
“Quê que tá passando hoje?”
“Cinzas e Diamantes.”
“Onde?”
“Na ABI. Hoje e amanhã, eu acho.”
“Tu vai ver?”
“Não sei.”
“Tu já viu esse filme?”
“Já.”
“E vai ver de novo?”
“Não sei.”
“Eu já vi?”
“Não sei.”
“Quê que ela deve estar fazendo, agora?”
“Tomando banho, eu acho.”
“Que parte do corpo ela tá lavando agora?”
“A que ela usa pra trabalhar.”
Falávamos baixo, para não acordar minha mãe, que dormia no sofá, no outro ambiente da sala.
“Tem jogo domingo?”
“Cara, eu nem sei.”
Ele levantou e tornou a debruçar-se na janela.
“É ela”.
Levantei também, mas sem a mesma sofreguidão de outros dias.
“Cara, essa mulher é gostosa”, ele disse.
“Será que tem outros caras olhando ela, agora?”
Meu primo esticou o pescoço para fora da janela.
“Acho que não. Nesse teu prédio só mora velho. Por que vocês vieram morar aqui?”
“Não sei.”
“Será que ela sabe que a gente fica olhando ela?”
“Acho que não. E, se sabe, ela gosta.”
“Por quê?”
“Mulher gosta de ser admirada, cara.”
“Por adolescentes espinhentos?”
“Nunca dá pra ver a cara dela direito.”
“É.”
“Meu irmão disse que ela tem o rosto comprido. Tem o queixo comprido.”
“Teu irmão conhece ela?”
“Não sei. Mas ele disse que viu ela outro dia, aí na Viveiros de Castro. Esse prédio aí dela dá pra Viveiros de Castro.”
“Porra, foi mesmo? E ele falou com ela?”
“Ele disse que ela tem cara de pistoleira.”
“O quê é isso?”
“Puta, eu acho.”
“Ela não é puta. Ela trabalha.”
“Puta também é profissão”.
“Quê que ela faz, de verdade?”
“Sei lá.”
Ficamos em silêncio.
“Nós não somos mais adolescentes, somos? Quer dizer, tecnicamente a gente ainda é, eu acho.”
“Não sei. O que é ser um adolescente, tecnicamente?”
“Lembra do Grande Mancha Vermelha?”
“Lembro”.
Grande Mancha Vermelha fora colega de ginásio nosso, alguns anos antes. Também era conhecido como Capitão Júpiter. Tinha a habitual coleção de espinhas no rosto, como quase todos nós, com a peculiaridade de possuir uma vermelha, imensa, que parecia migrar de um ponto a outro do rosto, periodicamente. Certa vez, tendo ele faltado às aulas uma semana inteira, correra o boato de que ela havia se alojado bem na ponta do nariz dele, motivo pelo qual ele se recusava terminantemente a sair de casa.
“Tu tá muito intelectual, hoje. Quem devia estar aqui pra conversar contigo era aquele judeu maluco. Como é mesmo o nome dele?”
“Tu tá careca de saber o nome dele. Ele tá na Venezuela.”
“Na Venezuela?”
“Já tem um mês ou mais, eu acho.”
“E que porra ele foi fazer na Venezuela?”
“Foi morar lá, num asram, ou ashram, eu não sei direito.”
“O quê é isso?”
“É uma comunidade de esotéricos, ou coisa assim.”
Meu primo riu.
“Eu não disse que ele era doido?”
A conversa e a sessão de voyeurismo estavam encerradas, mas ele ainda não havia percebido. Falamos mais algumas bobagens, e após os respectivos e cada vez mais breves acessos de risadas convulsivas, ele foi embora, e eu fiquei sozinho.
A janela do meu quarto dava para a área de serviço do prédio. Fui até lá: no sétimo andar, dois abaixo do meu, atravessado entre as lâminas da persiana fechada, estava o braço magro e pelancudo, de mulher, segurando uma espátula e limpando as fezes dos pombos. De repente, como sempre acontecia, o braço parou, como se soubesse que estava sendo observado, e logo depois retomou o serviço. Fiquei observando ainda por alguns segundos.
Dormi então, e acho que sonhei. Acordei banhado em suor. O rádio-relógio iluminava o quarto com seu clarão vermelho, e marcava quatro e quinze. Escutei então os gemidos. Vinham do quarto do meu irmão. Na época ele namorava uma garota ruiva, Mônica, que tinha um sobrenome quilométrico.
Fui até a sala, onde minha mãe dormia. Estava cada dia mais surda, portanto não havia perigo, mesmo que estivesse acordada. Voltei ao meu quarto, mas os gemidos continuavam. Tapei os ouvidos com o travesseiro, mas era inútil. Sentei na cama. Eu não podia continuar ali, ouvindo aquilo, então decidi sair.
O dia ainda não começara a clarear, e eu fui andando em direção à praia. Sentei em um banco do calçadão. Um casal se aproximava, vindo do Leme. Andavam lado a lado, de mãos dadas. Vinham bem colados um ao outro, depois se afastavam, estendiam os braços, mãos dadas ainda. Uma espécie de dança. Ouvi o rapaz dizendo:
“A gente tá fazendo papel de idiota, Cris.”
“É claro que estamos”, disse ela. Sentou ao meu lado. Trajava uma espécie de bata indiana, algo que parecia estar na moda, então.
“Você se importa de nós estarmos fazendo papel de idiotas, na sua frente?”
“Não”, eu disse.
“Tá vendo?” ela disse ao rapaz. “Ele não se importa.”
Mas o rapaz não gostou muito de dividir a atenção dela, e foi embora logo depois, sem que eu percebesse. Ela, obedecendo a um curioso e inexplicável impulso que acometia as mulheres que se aproximavam de mim, me fez confidente ali mesmo. Pai ausente, mãe insuportável, uma irmã de dez anos, autista, e uma sensação desagradável de não ter o que fazer no mundo. O que eu poderia dizer? Nessas horas, deixava tudo a cargo de meu sorriso, o magnífico. O efeito era infalível. Não lembro quanto tempo passamos juntos.
“Tchau, Cris”, eu disse.
“Os pescadores já estão chegando para o arrastão”, ela disse.
“É”, eu disse, olhando na direção deles.
“Vamos lá ver?”
“Ver o quê?”
Ela deu de ombros. “O que eles estão trazendo do mar.”
“Não”, eu disse. “Acho que eu vou para casa. Vou ver se ainda consigo dormir um pouco.”
“Tchau”, ela disse.
“Tchau.”
Ela foi andando em direção aos pescadores. A movimentação do arrastão já começara. De repente, ela parou e voltou-se para mim, rapidamente, mas não me olhou nos olhos nem disse nada. Deu as costas e foi embora.
À noite fui ao cinema, sozinho. Na saída eu desci as escadarias, em meio à multidão e seus aparatosos comentários sobre o filme. Uma garota de cabelos cacheados e ombros nus descia a meu lado. Sem olhar para ela, percebi que ela me observava. Ao chegarmos ao térreo, estávamos lado a lado.
“Eu vi você, na sala de espera”, ela disse.
Minha resposta foi a habitual: meu sorriso, o magnífico. O efeito foi infalível.
“Você estava...tão sério.”
“Eu estava só pensando”, eu disse.
“Você está sozinho?”
Fiz que sim com a cabeça.
“Eu também prefiro ver esse tipo de filme sozinha”, ela disse. “Você vai pra onde, agora?”
“Pra casa, eu acho.”
Andávamos ainda lado a lado.
“Você gostou do filme?”
“Eu já tinha visto, uma vez.”
“É mesmo? Eu achei lindo.”
“É um filme muito bonito, mesmo.”
A imagem que sempre ficava em minha cabeça era a do Cristo crucificado, de cabeça para baixo, numa igreja abandonada.
“Você vai pra que lado, agora?”
Havíamos chegado a uma esquina.
“Eu vou pra lá”, eu disse, apontando na direção da Glória.
“Vai pegar ônibus, também?”
“Eu acho que vou a pé”, eu disse.
“Ah, você mora por aqui?”
“Eu moro em Copacabana.”
Ela me olhou com espanto. “Você vai andando até Copacabana?”
“Eu moro na Prado Júnior.”
“Você não tem medo, não?”
“Eu já fiz isso algumas vezes, e nunca fui assaltado.”
Era verdade. Ficamos em silêncio.
“Tchau, então”, ela disse.
“Tchau.”
No caminho, já em Botafogo, passei por diversos bares, com mesas nas calçadas, apinhadas de gente. O som estridente de muitas vozes chegava aos meus ouvidos. Sentei numa mesa. Esperei alguns minutos, mas ninguém veio me atender. Levantei, e enquanto me certificava de que ninguém estava vendo, fui abordado por uma garota, vestida caracteristicamente, que me disse algo que não ouvi direito. Respondi um monossílabo qualquer.
“Tá sozinho?”
“Você nem imagina como.”
Ela voltou a dizer algo que não ouvi direito. Julguei ter ouvido a palavra ‘evitar’.
“Evitar o quê?”
“A solidão”, ela disse, como se soubesse do que estava falando. Talvez soubesse, mesmo.
Olhei para ela. Falava cantado. Eu até queria conversar. Sentia-me triste, aquela tristeza habitual, espessa. A garota provavelmente não alcançava essas sutilezas, e não havia como explica-las, pelo menos em linguagem que ela entendesse. Aquele pensamento não foi suficiente para amenizar meu estado de espírito, mas o foi para que meu sorriso, o magnífico, fizesse uma breve aparição, e o efeito foi infalível.
“Você parece tão triste”, ela disse. “Por quê? Aconteceu alguma coisa?”
Ela trazia um rosto de Cristo, com aqueles raios de luz por trás da cabeça, como no filme. A correntinha descia pelo pescoço, e a cabeça do Cristo ficava aninhada entre seus seios.
“Você vem sempre aqui?”
“Não”, eu disse.
“Não que ficar um pouco comigo?”
“Eu não tenho dinheiro.”
Ela riu. Olhou para o interior do bar, como se procurasse alguém.
“Não faz mal. Eu gostei de você. Você tem um lugar?”
“Tenho”, eu disse.
“Onde é?”
“Copacabana.”
“Copacabana? Tão longe assim?”
“É o único lugar que eu tenho.”
Ela suspirou. “Tudo bem.”
Pegamos o 572, e durante o curto trajeto, alguns passageiros nos observavam distraidamente. Descemos na Bolívar.
“Você mora aqui?”
“Não”, eu disse.
“Onde é que a gente tá indo?”
Andamos até a portaria do prédio onde eu morara até alguns poucos meses antes. O porteiro da noite dormia no hall. Bati no vidro e chamei: “Batatinha!”
O apelido era em razão da semelhança dele com aquele amigo do Manda-Chuva.
“Fica ali na porta da garagem”, eu disse, empurrando-a para lá.
Depois de incontáveis batidas no vidro com meu chaveiro, Batatinha acordou. Veio até a porta, com cara de sono, abriu-a e disse: “Quem é vivo sempre aparece. Seu irmão esteve aqui hoje. Mas nem demorou.”
“Foi mesmo? Com quem?”
“Com aquela garota do cabelo vermelho.”
“Ah, sei. E aí?”
“Vai no 704.”
“Valeu. Cadê a chave?”
Ele foi até um reservado e de lá voltou com um molho de chaves. Tirou uma delas e me entregou.
“É da porta de serviço.”
“Valeu.”
“Meia hora, viu?”
Deixei o dinheiro na mão dele.
“Não vai me complicar, viu?”
“Tudo bem, Batata.”
Entrei com a garota pela garagem. Ela parou em frente à porta do elevador. Puxei-a pelo braço.
“A gente vai pela escada?”
“É”, eu disse. “Não faz barulho.”
“Que andar é?”
“Sétimo.”
Ela parou. “Você vai me fazer subir sete lances de escada?”
“Fala baixo”, eu disse.
“A essa hora todo mundo já tá dormindo.”
“Por isso mesmo.”
“Você já morou aqui?”
“Já.”
“Espera um pouco”, ela disse, parando. “Deixa eu descansar um pouco.”
“Tá cansada, já?”
“Claro. No prédio onde eu moro tem elevador.”
“Aqui também tem. Mas a gente não pode usar. Podia complicar o Batatinha.”
“Tá todo mundo dormindo, a essa hora.”
“Eu sei. Mas a gente não pode usar. Vamos.”
Quando chegamos ao sétimo andar, eu disse: “A gente vai pro 704. Eu vou lá e entro. Se eu não voltar logo é porque tá tudo limpo. Aí você vem. Sem fazer barulho. Eu vou deixar a porta só no trinco.”
Ela esticou a cabeça para frente e viu o corredor que se bifurcava.
“Espera”, ela disse. “Onde fica esse 704? Pra que lado eu vou?”
“O 704 é por ali, tá vendo? Espera um minuto e depois você vem. Sem fazer barulho.”
“Eu já sei”, ela disse.
Fui até o apartamento, abri a porta sem fazer barulho, e entrei, deixando a porta no trinco. Logo depois a garota entrou.
“Acende a luz”, ela disse.
“Não precisa.”
“Mas eu não tô vendo nada”, ela disse.
“Dá a mão.”
Passamos abaixados pela área de serviço, entrando no interior do apartamento.
“A essa hora tá todo mundo dormindo”, ela disse, um pouco irritada.
“Fala baixo.”
“Ninguém vai ver que a luz tá acesa.”
“A gente não pode arriscar. Os vizinhos sabem que o apartamento tá vazio.”
“A gente pode fingir que tá procurando apartamento.”
“A essa hora?”
“Quê que tem?”, ela disse, ficando na ponta dos pés para me beijar.
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Alguns minutos depois estávamos deitados lado a lado.
“Você vai me dizer, agora?”
“Dizer o quê?”
“Por que você estava triste em Botafogo?”
“Eu não estou triste em Botafogo”, eu disse, e tive uma sensação estranha. Uma espécie de paramnésia. Alguém que nunca estivera em Botafogo dissera algo parecido, em algum lugar.
“Mas estava”, ela disse.
“Era melancolia”, eu disse.
“Melancolia?”
“É. É uma palavra grega, eu acho. Tem a ver com o fígado, ou coisa parecida. Uma indisposição qualquer no fígado provoca tristeza.”
“Você comeu alguma coisa estragada, hoje?”
“Não”, eu disse. “Quer dizer, acho que não.”
Estávamos deitados no chão da sala, e eu vi uma sombra mover-se sob a porta. Levantei-me de um salto. Havia perdido a noção do tempo. Fui até a área de serviço, e entreabri a porta.
“Quer complicar minha vida, Tonho?”
“Foi mal, Batata. A gente já tá saltando fora.”
Voltei à sala. A garota estava sentada. Cobria os seios com as mãos.
“Vamos”, eu disse.
Comecei a me vestir. Ela levantou, e procurava minha boca.
“Vamos ficar mais um pouco.”
“Outro dia”, eu disse.
“Eu quero te ver de novo.”
“Qualquer dia desses”, eu disse, tentando me desvencilhar dela e calçar os sapatos.
“Eu estudo”, ela disse, de repente.
Parei, tentando entender o anacoluto, e olhei para ela.
“Bacana”, eu disse.
“Eu quero ser veterinária.”
“Quando eu ficar doente, eu juro que procuro você.”
“Eu não tenho ninguém, e a única maneira que eu achei pra pagar meus estudos foi essa.”
“Eu entendo”, eu disse. “Por que você não me disse antes? Você tá tendo prejuízo, perdendo tempo aqui comigo.”
“Eu gostei de você”, ela disse.
“Eu também”, eu disse, mas não a olhei nos olhos.
Toquei o rosto dela, e beijei-a na boca. Ficamos abraçados alguns segundos.
“A gente pode descer de elevador”, eu disse, constrangido por não ter nada a dizer.
Ela não disse nada.
“Eu vou ver se tá tudo limpo.”
Deixei a porta no trinco, e fui até o hall dos elevadores. Tudo calmo e deserto. Voltei ao corredor do 704, e minha mão já estava sobre a maçaneta quando a porta do 703 se abriu. Senti um frio me percorrer a espinha. Pensei em entrar rapidamente no apartamento, sem olhar para o lado, mas não consegui.
“Mocinho?”
Era uma senhora, bem velha, de camisola, que me olhava com ar benevolente. Meu sorriso, o magnífico, respondeu a pergunta dela. O efeito foi infalível.
Ela sorriu para mim. Fez um sinal com o indicador, para que eu a seguisse, e entrou no apartamento, deixando a porta aberta. Fiquei sem saber o que fazer. O mais certo seria pegar a garota e sair correndo, mas eu ainda estava no mesmo lugar quando a velha voltou, armada do mesmo sorriso, e disse: “Mocinho...”
“Senhora?”
Ela novamente fez sinal com o indicador, e entrou no apartamento. Aproximei-me da soleira da porta. Lá dentro tudo parecia muito iluminado, em contraste com o breu do 704, e a penumbra do corredor. Quando entrei no apartamento, a velha estava na entrada do corredor que levava aos aposentos interiores. Parecia estar me esperando, e repetiu o gesto familiar com que me chamava.
Eu a segui, mesmo com uma incômoda sensação de que aquilo já estava indo longe demais. Ela estava agora parada em frente a um dos quartos, também bastante iluminado. O quarto dela, provavelmente. Parei um instante, angustiado, tentando imaginar o quê aquela velha poderia querer comigo, no quarto dela.
Quando entrei no quarto, ela estava do outro lado da cama de casal, sorrindo. Deitado na cama, estendido, quase esticado de tão magro, um velho dormia, com as mãos pousadas em cruz sobre o peito.
Ela então veio para o meu lado. Bem próximo a ela, observei sua pele lisa, transparente. Fez um sinal para que eu me afastasse um pouco. Abaixou-se ao lado da cama. Tive nojo de mim mesmo, mas não pude deixar de notar alguns detalhes do corpo dela, nítidos sob a camisola fina. Ela estava sem roupa íntima. Virei o rosto e tive um impulso de sair correndo dali. A velha retirava algo que estava guardado sob a cama. Com esforço, já ofegante, ela se aprumou e colocou sobre o colchão, ao lado do velho adormecido, uma grande lona enrolada. Após retomar o fôlego, ela puxou a lona para o lado desocupado da cama, começando a desenrolá-la. Ao terminar, fez um sinal para que eu me aproximasse, e segurou o velho pelas canelas.
Olhei para ela. Compreendi que ela queria deitar o velho sobre a lona. Fiquei parado sem ação, enquanto ela balançava suavemente as pernas do velho. Ele estava morto. Diante da minha hesitação, ela começou a gesticular de forma inarticulada. Segurei desajeitadamente a cabeça do velho, e coloquei-a sobre uma das extremidades da lona. Ela começou a enrolar a lona, com o velho dentro. Ao terminar, com pequena ajuda minha, estava novamente ofegante.
Pensei que era tudo, e dei as costas para ir embora.
“Mocinho...”
Voltei-me, e vi que ela apontava em direção à porta. Indicava o velho com a cabeça, e apontava para a porta. Compreendi que ela queria tirá-lo dali.
“A senhora quer levar ele pra onde?”
Ela começou a gesticular novamente, nervosa, repetindo os gestos que fizera com a cabeça e as mãos, freneticamente. Fiquei nervoso, também. Peguei a cabeça do velho, ela o segurou pelas canelas, e lá fomos nós, carregando uma lona com um defunto dentro corredor afora. Tive medo de ter um acesso de riso, ou de tropeçar, qualquer coisa assim. Quando chegamos à sala, eu comecei a descer minha ponta da lona, mas ela não fez o mesmo, e entendi que não era para a sala que ela queria transportar o velho. Sem saber para onde ir, parei, exasperado. Com a cabeça, ela indicava a porta do apartamento, e fez menção de prosseguir o trajeto interrompido. Já fora do apartamento, olhei para a porta do 704, que estava fechada. Quando chegamos ao hall dos elevadores, depusemos enfim a lona no chão. Encostei-me na parede, e limpei o suor da testa com a costa da mão.
“Mocinho...”
A velha me indicava a porta de um dos elevadores. Como eu não saísse do lugar, ela mesma apertou o botão. Ouvimos o estardalhaço das máquinas.
Quando o elevador chegou, ela sinalizou para que eu abrisse a porta. Ela foi ao apartamento, e de lá voltou com uma pedra na mão, que devia usar para impedir que as portas dos cômodos do apartamento dela batessem com o vento. Colocou-a na porta do elevador, para mantê-la aberta. Depois voltou e segurou novamente sua ponta da lona, observando-me para ver se eu fazia o mesmo. Peguei então minha ponta, e entramos na cabine. Eu já ia depondo a cabeça do velho no chão do elevador, quando percebi que ela novamente se agitava, freneticamente. Mexia com a cabeça, fazendo um movimento que indicava minha posição, de cima para baixo, repetidas vezes. Entendi novamente o que ela queria. Com dificuldade, ajeitamos a lona para que ela e seu conteúdo ficassem de pé, encostada na parede da cabine.
Recostei-me, então, como o velho na lona, na parede, e fechei os olhos. Estava cansado, suado. De repente senti algo extremamente suave tocando meu rosto, e estremeci, arrepiado. A imagem nítida da garota apareceu em minha mente, e eu me voltei para ela. Quando abri os olhos, a velha recolhia a mão que me havia afagado o rosto.
“Mocinho...”
Ela olhou para a lona, com tristeza, deu as costas e tirou a pedra que mantinha aberta a porta do elevador. Esta se fechou pesadamente, e o elevador ficou parado. Apertei o T e desci com o velho.
No hall do prédio Batatinha já dormia, novamente. Deixei a chave sobre a mesa, e fui embora. Resolvi ir andando para casa, pelo calçadão. Tudo de diferente que poderia ocorrer comigo naquele dia já acontecera. No meio do caminho fiquei imaginando se a garota havia ido embora ou se ainda estava no 704, me esperando. Mas isso era tão ridículo quanto improvável.
Em casa, entrei no quarto. Havia um cheiro característico no ar.
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Saí de casa. Acho que fui levado também pela idéia meio romântica de voltar a encontrar aquela garota, Cris, na praia.
O dia ainda estava escuro, e eu fiquei andando pela areia, descalço. Sentei. Quando o céu apenas começava a clarear, fui até o banco onde me sentara, na véspera. Estava um pouco mais frio. Olhei para os lados, tudo estava deserto. Baixei a cabeça e fiquei olhando para o chão. Estava olhando para o chão quando ouvi uma voz atrás de mim:
“Ei!”
Olhei para trás. Eram três caras. Um deles sentou ao meu lado.
“E aí?”
Passou o braço sobre meu ombro.
“Tem o quê pra gente aí?”
Tirei o braço dele do meu ombro.
“Nada.”
“Que é isso, garotão?” disse ele tornando a passar o braço sobre meu ombro. “Que violência é essa?”
Fiz menção de levantar.
“Já vai? Agora que a gente tá chegando tu vai embora?”
Fiquei calado, e olhei para ele.
“Sabe o que é, garotão...”
Aproximou o rosto do meu, e disse, bem próximo: “É que a gente tava por aí...e sabe como é, o movimento foi fraco...”
Os outros começaram a rir. A voz do que falava comigo era alternadamente grossa e fina, como a de um adolescente cuja voz está mudando.
“...e tu aí, a toa, sozinho...”
Os risos aumentaram.
“Será que...será que tu não...”
Revirou os olhos, e passou a língua sobre os lábios, debochadamente. Os outros continuavam rindo, e emitiam outros sons, também.
“E aí, meu irmão? Não vai dizer nada?”
“Dizer o quê?”, eu disse.
“Isso. Não diz nada. Vamos fazer o seguinte. Vamos dar umas bandas por aí.”
Puxou-me pelo braço. Eu resisti, e os outros me cercaram.
“Quê é isso, meu irmão? Vamos aproveitar o dia. A praia. Olha a praia aí. Tu tá muito branco.”
Eu estava só. Estivera só, com a garota, Cris, naquela mesma praia, com a garota na saída do cinema, com a outra no 704. Estivera só, com todas elas. Mas agora era uma solidão diferente, devassada. Era muito diferente.
Quando chegamos à beira do mar, o líder dos caras disse:
“Tu vem sempre aqui a essa hora?”
“Não”, eu disse.
“Então tu deu um azar desgraçado, meu irmão.”
Riu, o que soou como um comando para os outros, que começaram a rir também.
“Tu anda com esses dois aí pra quê? Pra servir de claque?”
“Ih, olha só, ele fala!”
Pararam de rir. Os outros me observavam, creio que ofendidos.
“Que violência é essa, meu irmão? A gente só quer levar um papo.”
“Por que vocês não levam um papo entre vocês mesmos? Ou vocês não tem o que dizer uns pros outros?”
Os três se entreolharam. Fiz um gesto de impaciência, dei as costas e comecei a andar em direção ao calçadão. Eles começaram a andar em torno de mim. De repente o líder tirou algo de um bolso. Ouvi o som da mola, e a lâmina saltou.
“Tá indo pra onde, garotão? A gente ainda não te liberou.”
Eu havia parado. A ponta da lâmina estava bem próxima ao meu nariz.
“Não gostou da gente, garotão?”
Estávamos frente a frente. Um deles ria, mas o outro agora estava sério. Olhei bem para eles. Não deviam ter mais de quinze anos.
“Bora, Gaspa”, disse o que estava sério. “Deixa esse mané aí.”
“Não, porra! Eu ainda nem comecei com ele.”
“Bora, deixa esse cara aí.”
O líder se virou para encarar o motim, e nesse instante a lâmina avançou e cortou minha narina. Senti o sangue quente sobre os lábios.
O líder olhou para mim, pálido com o susto.
“Merda!”
Levei a mão ao nariz, pensando em limpar o sangue, mas só consegui espalhá-lo ainda mais.
“Tá vendo o quê tu fez?”, disse o líder ao amotinado.
“Cai fora”, disse o outro, me empurrando.
Deram as costas e saíram correndo, pulando e dando risadas. O líder brandia a faca de mola em direção aos outros, que se esquivavam e riam. Não olharam para trás.
Fui até a beira do mar, e afundei o rosto na água salgada. Senti de imediato uma forte ardência, e levantei. Não tinha lenço, nada que pudesse usar para limpar o sangue no rosto, então puxei a camisa e usei-a para esse fim. A camisa ficou suja de sangue. Fui andando para casa, indiferente, e as poucas pessoas que passavam pelas ruas àquela hora me olhavam espantadas, sem que eu soubesse o motivo.
Na frente do meu prédio havia uma aglomeração de pessoas, mas eu não me interessei, aproveitando para entrar sem ser visto. O dia estava clareando.
Entrei no elevador. Havia sangue seco no meu lábio superior, como um bigode. Quando saí do elevador, tudo parecia diferente. O corredor era estranho, a pintura das paredes parecia haver descascado da noite para o dia, as próprias portas dos apartamentos estavam diferentes. 701 e 702. Eu havia apertado o 7, dois andares abaixo do meu. Era o andar onde morava a velha que limpava o batente da janela, com uma espátula, todos os dias, com a persiana fechada. Voltei ao elevador, antes que alguma coisa diferente acontecesse.
Entrei em casa, fiquei alguns segundos no escuro. O apartamento parecia a rua. Uma brisa soprara no instante em que eu abrira a porta.
Fui até o quarto do meu irmão. Lá, a janela, que dava para a rua, estava aberta, e a cortina esvoaçava do lado de fora. Recolhi a cortina e fechei a janela, fui para o meu quarto e me joguei na cama.
Senti frio, mas era como se estivesse sentindo algo de que já me esquecera. Alguma coisa me contraía a boca, em intervalos regulares. Cerrei os punhos, e abri os olhos.
Estava mais escuro que o habitual.
Batiam à porta. Eu estava banhado em suor. Fiquei sentado alguns segundos, pensando no que tinha acontecido. Senti aquela tristeza habitual, palpável. Mas era preciso abrir a porta.
O porteiro da noite e um homem que se identificou como policial estavam lá. Como as pessoas que haviam passado por mim na rua, olharam para mim, para minha camisa, com espanto. Algumas coisas foram ditas. O porteiro parecia não saber o que fazer. Era um homem simples e modesto. O polícia perguntou:
“Seu irmão está em casa?”
“Não”, eu disse.
Olhou para o porteiro da noite.
“Quer descer conosco?”
Por um momento olhei para ele sem entender. Então me lembrei da aglomeração em frente ao prédio. Exatamente embaixo da janela do quarto do meu irmão. Revi então, mentalmente, o caminho que fizera, ao entrar no apartamento minutos antes, da porta até a janela. Lá, alguma coisa dentro de mim parecia ter-se debruçado na janela aberta, e olhado para baixo, para o vazio.

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