quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Notas soltas sobre acordes repetitivos

Um Parto (Parte da coletânea Velhos Olhos Castanhos) Taciane e Sílvio fizeram parte da fauna por pouco tempo. Haviam alugado o 405. Ela fazia artesanato, que vendia em Ipanema, na feira – me convidara inclusive a ir lá, um dia desses – e ele era poeta. Imprimia pequenas plaquetas, com suas poesias, e me pedia que as lesse em voz alta. Taciane era muito branca, tinha cabelos castanho-claros encaracolados, e aparência não muito saudável. Ao menos era essa a minha impressão. Ele, evidentemente, cultivava uma imagem, cabelos longos, óculos de aros redondos, barba por fazer. Estava sempre assim. Deu-me exemplares de três livrinhos seus, mandados imprimir por ele mesmo. No apartamento deles eu senti, pela primeira vez, o cheiro de cigarros de maconha. Ofereceram-me, uma vez, mas eu recusei.
Conversar com Sílvio era ser submetido a uma saraivada de nomes de autores, estilos literários, períodos, e esse tipo de coisa. Taciane o observava nessas horas, enquanto se ocupava de seu artesanato, evidentemente apaixonada. E eu me perguntava - com ar de quem estava muito interessado no que ele falava, o que diabo tinha ela visto naquela figura esquálida e recitativa. Mas isso, de qualquer forma, não era da minha conta. O quê ela teria visto em mim, igualmente? Sílvio me achava extraordinariamente sensível (palavras dele), e acho que tentava, de alguma forma, me cooptar, me transformar num poeta, ou coisa que o valha. Ele também me achava extraordinariamente (tinha uma queda por esse ‘extraordinariamente’) receptivo, o quê quer que isso significasse, mas em verdade o que eu gostava mesmo era de ver Taciane, armando colares de contas, esculpindo pequenas peças em madeira, sentada como o Buda, com uma bata bem curta e sem calcinha, bem à minha frente. È claro que eu, às vezes, me perguntava se já não havia passado da idade de apelar para esse voyeurismo, ainda que involuntário, mas que diabo!, era ela que proporcionava o espetáculo, ainda que involuntariamente, também. E me perguntava, também, se Sílvio saberia ou não o verdadeiro motivo de meu comparecimento, dia sim, dia não, para apreciar o espetáculo de sua inteligência em movimento e tomar conhecimento daquele mundo tão extraordinário, naturalmente guiado por ele, enquanto tentava, furtivamente (creio eu), distinguir o que era pêlo e o que era pele naquele pequeno trecho de paraíso com iluminação indireta.
Enquanto ele falava, cada dia mais verborrágico, Taciane não dizia nada, observando respeitoso silêncio. Provavelmente jamais passou por sua cabeça a idéia de que sentar-se, de bata curta e sem calcinha, frente a frente com um estranho, pudesse ser algo indecente, ou mesmo impróprio. As pessoas sentavam-se, e era só, não importando o que estivessem vestindo, ou, no seu caso, o que não estivessem vestindo.
Aquilo durou algumas semanas, talvez um mês. Ficou claro que não havia qualquer malícia da parte dela, nem sequer a sombra de uma segunda intenção, pois ela pouco olhava em minha direção, e, quando o fazia, era apenas um relance. Quando o espetáculo perdeu o gosto da novidade, eu deixei de ir lá. Aquilo era coisa de adolescente, e de certa forma me repugnava continuar agindo como um. Permanecia apenas uma certa contrariedade, despertada por aquela devoção de Taciane por Sílvio. Ciúmes, provavelmente, mas eu nada sabia a esse respeito. Talvez sequer tenham dado pela minha falta. Ela não era diferente de ninguém, não era diferente de Rosângela, que não tinha ocupação conhecida e era tão mais acessível. Mas o que me atraía em uma não era a mesma coisa que me atraía na outra. Era como se não sentisse desejo realmente por ela, mas quisesse ficar perto. Com Rosângela, uma vez passada a febre, cessava a vontade de ficar perto.
Um dia eu estava imerso em pensamentos (talvez os do parágrafo anterior), quando Taciane veio me procurar. Reclamou da minha ausência, perguntando-me se ela havia feito qualquer coisa que justificasse tão prolongado afastamento. Eu disse que não, claro. Contou-me, então, que Sílvio tinha ido embora. Mas não era nada demais. Ela apenas revelara a ele que estava grávida, e que, dessa vez, não abortaria. Depois de algumas semanas de comportamento estranho e ausente, respostas lacônicas e reticentes, ele desapareceu. Ela estava com aparência ainda menos saudável que o habitual.
No apartamento dela, os poucos móveis, agora, davam ao local a aparência de um lugar prestes a ser abandonado, do qual não se guardarão boas recordações, mas difícil de ser deixado para trás, da mesma forma. Ela me mostrou um papel, uma notificação de despejo, creio eu. Do que ela falou, de modo confuso e entrecortado, eu deduzi que o aluguel era pago por Sílvio, ou melhor, pelos pais dele, que também custeavam a impressão de suas plaquetas. A notificação era endereçada a ele. Taciane me disse que já entrara em contato com seus pais, que moravam em outro estado, anunciando que em breve estaria de volta, e pedindo que lhe mandassem dinheiro para a passagem. Entendi que a notícia não fora muito bem recebida lá, no Paraná, ou Santa Catarina, não lembro ao certo, e que isso a deixara abatida. Fiquei melancólico, ouvindo aquilo.
Perguntei a ela se estava grávida, mesmo, pois quase não tinha barriga alguma. Ela então levantou a bata, que a disfarçava bem, embora fosse muito pequena. Sutiã também não era um item em seu vestuário. O quê eu poderia fazer por ela? Ela confessou então que me procurara para pedir que passasse a noite com ela, pois não se sentia bem. Tivera, na noite anterior, um pesadelo terrível, e não queria ficar sozinha. Concordei na hora, sem hesitar, mas era como aceitar o convite de uma irmã para dançar. Perguntei como fora o pesadelo, mas ela não soube dizer. Dormimos juntos, eu com o braço passado sob sua nuca, ela com a cabeça abandonada sobre meu peito.
De manhã, gemidos sufocados de dor me despertaram. Ele já não estava a meu lado, estava fora do colchão, de cócoras, e, ao me ver acordado, passou a chorar baixinho, soluçando dolorosamente, enquanto um líquido escuro e viscoso saía do seu corpo e alagava o assoalho. Fiquei alguns segundos sem ação, mas aquilo durou pouco. Vi que havia algum dinheiro em minha carteira, e alguns minutos depois estávamos na rua, ela enrolada num lençol, eu descabelado, mandando o porteiro conseguir um táxi urgente. A caminho do hospital, Taciane não falava nada, respirava irregularmente, e tinha tremores. Chegando à Emergência, onde ela foi colocada numa maca, eu fiquei aguardando que algo acontecesse. Pouco depois a levaram para dentro, e pessoas de branco começaram a fazer perguntas que eu não sabia responder. Pré-natal, quantos meses, coisas assim. Eu nada sabia a respeito. De repente me vi sozinho. Mas não por muito tempo. Um médico veio em minha direção, trazendo consigo uma legião. Enfermeiras, parentes de pacientes internados, de feridos graves, todos querendo atenção. Dei um passo para trás, para dar passagem, mas ele falou comigo. As pessoas ao seu redor falavam também, perguntavam, esbravejavam, exigiam respostas. Fiquei sabendo vagamente que meu filho nascera prematuro, e que estavam tentando salvá-lo, e à minha esposa, também. O médico e sua legião se afastaram, com estrépito, e era como se algo, no vácuo de sua passagem, houvesse apagado as luzes, e sugado todo o ar do mundo, para que nenhum som mais se propagasse. Saí daquele ambiente doentio. Mas lá fora nada melhorou. Sentei-me numa amurada. Eu continuava com a sensação de surdez, enxergava com dificuldade, olhava os carros silenciosos, e procurava arrancar algum som deles, de algum lugar, dos pneus, de seus passageiros ocultos pela sombra. O dia era claro, ensolarado, e era um dia normal, mas algo irrompera nele, vindo não sei de onde. Algo irrompera no dia, na vida, e eu não sabia o que era.

Explicação Necessária

As duas histórias postadas se referem às melancólicas aventuras de dois irmãos, em algum lugar dos anos 80. Um amigo meu, à época da redação dos textos - o maluco que foi para a Venezuela - batizou meu "estilo" de lirismo lacônico, e o rótulo me pareceu, durante algum tempo, mais inspirado que o próprio estilo. Quanto aos textos, há muitos anos eu tive a intenção de publicá-los da forma normalmente aceita, mas creio que todos sabem como isso é dificil e, principalmente, entediante. De qualquer forma, o restante dos textos será postado oportunamente, ou seja, nos intervalos do meu trabalho. À guisa de informação, são histórias que se passam naquele limbo entre o fim da adolescência e o início da vida adulta, onde lirismo e vulgaridade andam juntas, frequentemente de mãos dadas. É isso. Obrigado pelo tempo de vocês!

O que se seguiu...

MÔNICA

Ouça Trois Gnossiennes de Erik Satie ao ler este texto

Eles vinham pela Bolívar. Antes de atravessar a Barata Ribeiro, ele parou, próximo a uma banca de jornais.
“Que foi?”
“Nada”, ele disse.
“O sinal tá aberto, vamos atravessar logo”, ela disse.
“Olha ali do outro lado.”
“O quê?”
“Ali, aquele cara.”
Ela olhou para o outro lado da rua. Um homem alto, magro e calvo, de pele bem branca, andava de um lado para o outro. Vinha até o hidrante da esquina e voltava até a portaria do prédio para onde eles se dirigiam. O homem levava um cigarro à boca, em intervalos regulares.
“Quem é ele? Você conhece?”
“Ele mora nesse prédio onde eu morei.”
“Mas você conhece ele?”
“Mais ou menos.”
“Ele já deve ter percebido que a gente tá observando ele.”
“Não”, ele disse. “Não...”
“Como é que você sabe?”
“Eu não sabia”, continuou ele, “que ele descia a essa hora. Quer dizer, eu nunca tinha visto ele na rua a essa hora.”.
“Como assim? Ele faz isso sempre?”
“Isso o quê?”
“Ficar assim, andando de um lado para o outro, na rua.”
Ele riu.
“O quê foi?” ela disse.
“Nada, não. Meu irmão não gostava que se falasse assim.”
“Assim como?”
“Andar de um lado para o outro. Como se fosse coisa de maluco.”
Ela riu, também.
“Mas não é o que ele está fazendo?”
“Aparentemente, sim.”
Ele a apertou nos braços e beijou-a na boca. Ela se afastou dele.
“Explica isso direito, vai.”
“Não, não é nada, não. Esquece.”
Ela estava parada, e resistia à mão dele, que a puxava para que atravessassem a rua.
“Que foi? Tá com medo dele?”
“Vamos pra sua casa”, ela disse, de repente.
“Minha casa? Por quê?”
Ele soltou a mão dela.
“Meu irmão deve estar em casa.”
Começaram a atravessar a rua. Ela havia dado a mão a ele. Passaram ao lado do homem. Como já soubesse o que tinha a fazer, ela foi até a porta da garagem. Voltou-se para observar o homem, discretamente. O namorado voltou.
“Vamos.”
Desceram a rampa da garagem, e se dirigiram ao elevador de serviço.
“Pegou um com mobília?”
“Não”, ele disse, e olhou para ela. “Ah, Mônica, qual é? Com mobília o Batata cobra mais caro. Eu tô duro.”
Ficaram em silêncio.
“Vai ficar com essa cara, é? Só por causa disso?”
Ela fez um gesto com a mão, para que ele parasse. Saíram do elevador. De repente ele parou e deteve-a pelo braço:
“Quer ir embora? Se você quiser a gente sai daqui agora mesmo.”
Ela se soltou, e seguiu em frente.
“Qual é o apartamento?”
“É só falar, Mônica. Quer ir embora?”
“Fala baixo”, ela disse. “Vai acordar todo mundo.”
“Ah, que se foda todo mundo.”
Ela esperou alguns segundos, e perguntou novamente qual era o apartamento, puxando-o pelo braço. A resistência foi diminuindo, e eles seguiram em frente. Ele girou a chave na fechadura, com cuidado, e abriu a porta lentamente, prevenindo possíveis rangidos.
“Entra”, ele disse.
Ela entrou. Com a porta ainda aberta, um breve clarão vindo do corredor iluminou a sala, e ela procurou localizar-se no apartamento. Logo, a janela tornou-se o único ponto de referência possível. Ficou parada, em pé, no meio da sala vazia, e ouviu o ruído da porta sendo fechada.
Sentiu um leve arrepio quando ele tocou-lhe os ombros e beijou-lhe a nuca. Foi até a janela e olhou para baixo.
“Sai da janela, Mônica!”
“A janela do quarto dá pra Bolívar?”
“Eu não sei. Eu não morava nessa coluna. Acho que dá. Por quê?”
Ela entrou pelo apartamento, já mais habituada ao escuro.
Ele a acompanhou com os olhos, sem entender. O toalete, pensou. Começou a desabotoar a camisa. Ela não voltou da pequena incursão, e ele parou de despir-se e foi procurá-la. Encontrou-a num dos quartos, debruçada na janela.
“Sai da janela, Mônica! Alguém pode te ver, e a gente acaba complicando a vida do Batata!”
Ela fez um sinal para que ele se aproximasse.
“Ele ainda está lá”, ela disse.
Ele permaneceu parado.
“Ele quem?”
“Aquele cara, lá embaixo.”
“Ah, sei. E daí? Esquece ele.”
Ela se virou para ele: “Como é o nome dele?”.
“Roberto”, ele disse.
Ela se aproximou dele, acariciou-lhe o peito, beijando-o suavemente.
“Por que você briga comigo?”
“Eu não brigo com você. Vamos. A gente tá perdendo tempo.”
“Por que ele faz isso?”
Estavam abraçados.
“Do quê que você tá falando?”
“Por que aquele cara fica na rua, andando de um lado para o outro?”
“Eu não sei, Mônica”, ele disse.
“Ele é louco?”
Ele riu, e relaxou um pouco.
“Eu não sei. Quer dizer, acho que é. Ele uma vez disse pra minha mãe que o irmão dele é que é o verdadeiro louco da família. E ele estava falando sério.”
“Sua mãe conhece ele? Conversava com ele?”
“Conversava.”
Ela se afastou um pouco, para olhar para ele. Estava rindo, e disse:
“E é verdade?”
“O quê?”
“Que o irmão dele é louco?”
“Não sei. Por quê?”
“Porque se ele não é o maluco da família, e fica de noite na rua andando de um lado para o outro daquele jeito, imagina o que não faz o irmão dele, que é o louco de verdade.”
Ele a abraçou novamente, um abraço apertado e carinhoso. “É verdade. Mas que importância tem isso?”
“Me fala sobre ele. Por que ele ficou louco? Ou ele nasceu assim?”
Ele fez um leve gesto de impaciência.
“Eu não sei, Mônica. Eu não sei. Quando eu vim morar aqui, ele já tinha esse hábito de ficar na rua, andando de um lado para o outro. Eu só não sabia que ele ficava na rua até essa hora. Ele já era maluco quando eu cheguei aqui. Agora, eu não sei se ele já nasceu assim ou se ficou assim depois. Eu nunca troquei uma palavra com ele.”
“Nunca?”
“Nunca. Quer dizer...”.
Afastou-se um pouco dela.
“Mônica, a gente tá perdendo tempo...”
“Conta, vai. Conta. Você falou com ele alguma vez?”
“Um dia eu desci o elevador com ele. Eu tinha uns dezesseis anos, eu acho, e tava indo pra escola. Sempre que a gente ia pegar o elevador e via que ele estava lá, a gente voltava, inventava uma desculpa na cabeça, ou fingia que tinha esquecido alguma coisa em casa, só pra não ficar com ele no elevador. Mas naquele dia eu não fiz isso. Eu tava com um caderno debaixo do braço, aberto numa das páginas. Eu fiquei encostado na parede do elevador, me cagando de medo, sei lá por que. Aí ele chegou perto de mim, apontou pro caderno e disse: ‘Química? ’ Aí eu disse, ‘é’, e aí ele começou a rir bem alto, aquelas risadas de maluco que a gente vê nos filmes... igualzinha. Aí eu olhei pra ele e dei o sorriso mais sem graça que eu já dei na vida. E olha que eu já dei uma porrada de sorriso sem graça na vida. Mas esse foi o mais... foi mesmo.”
Ficou alguns segundos em silêncio, e depois continuou:
“E enquanto ele dava risada, eu olhei a cara dele. Ele não tinha um dente na boca.”
Olhou para ela na penumbra, e era angustiante não poder certificar-se de que havia compaixão no rosto dela.
“Dizem que o irmão dele tinha mandado arrancar os dentes dele, pra que ele não se machucasse. Dizem também que as paredes do quarto dele são acolchoadas, pelo mesmo motivo.”
Ele se dirigiu à porta do quarto.
“Dizem que o irmão dele”, continuou, sem olhar para Mônica, “tentou internar ele, e tudo, depois que a mãe deles morreu. Não queria ficar com a responsabilidade. Mas ele começou a. deixar de comer, não fazia nada, não descia mais pra rua, ficou assim...”
Encurvou o dedo indicador, na penumbra, sem se importar se ela via ou não.
“E aí?” perguntou ela, que o havia seguido.
“Aí o irmão desistiu de internar ele.”
Ainda estava entre a soleira da porta e o corredor que levava à sala. Depois de alguns instantes de silêncio, ela também saiu do quarto.
“Vem”, ele disse, estendendo a mão para ela.
Sem tomar a mão dele, ela o seguiu até a sala. Despiu-se. Sentou-se na posição do Buda, e mais uma vez estendeu a mão.
“Vem.”
Ela despiu-se lentamente, enquanto ele permanecia alguns segundos com a mão estendida.
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De súbito, ela se afastou dele.
“Vamos pra sua casa”, ela disse.
Ele a encarou ainda uma vez, incrédulo. Afastou-se dela, inclinando o tronco para trás e apoiando os cotovelos no chão.
“Mônica...”
“Por favor”, ela disse, com doçura. “Eu não quero mais ficar aqui.”
Levantou, e começou a vestir-se, rapidamente.
“Eu não sei”, ela disse, “que necessidade a gente tem de ficar vindo aqui.”
“Eu não posso te levar lá pra casa, toda vez que a gente quiser...”
“É só pra isso que você me quer?”
Ele a observava, desconcertado.
“Porra, Mônica, não é só pra isso que eu te quero! Vai começar de novo?”
Ele levantou, realmente nervoso.
“Minha casa não é motel, porra! Mora gente lá!”
Ela também estava nervosa.
“Não vejo porque esse prurido todo”, ela disse. “Tua mãe dorme o tempo todo, e teu irmão não tá nem aí pro que a gente faz ou deixa de fazer. E foi você que me levou lá pra isso, a primeira vez”
“É por causa dele que você quer ir pra lá, não é?”
“O quê?”
“Por que você não abre o jogo?”
Ela o encarou: “Se você soubesse como você está sendo...”
“Ah, sem essa, Mônica”, ele disse.
“Vai ter crise de ciúme agora, é?”
Entreolharam-se por um instante. Ela disse: “Não estraga tudo que...”
“Estragar o quê? O que já tá estragado?”
Ficaram apartados, distantes, cada um a sós consigo mesmo.
“Por que você não abre o jogo logo? Você gosta dele? Tudo bem, eu não vou te odiar por isso. Eu posso ser tudo, menos irracional. E não sou burro, também. Posso não ser um intelectual como vocês dois, mas não sou burro. Eu sei quando sou demais.”
Ela não disse nada.
“Vai, Mônica, fala alguma coisa. Diz que gosta dele, e a gente acaba tudo agora.”
“Você está sendo ridículo.”
Estavam ambos vestidos. Entreolharam-se novamente, como se perguntassem um ao outro o que os mantinha ali, ainda.
Saíram do apartamento em silêncio, e ele bateu a porta. Ela fez um gesto para que ele não fizesse barulho, mas ele não deu atenção.
Desceram pelo elevador, e saíram pela garagem. Ele deixou a chave na mão do porteiro, e, andando lado a lado, acompanharam Roberto em sua viagem ao hidrante da esquina.
“Tá indo pra onde?”, ela disse, quando percebeu que ele se preparava para atravessar a Barata Ribeiro.
Ele parou, já sobre a faixa de pedestres.
“Pra casa”, ele disse.
“Vamos andando”, ela disse.
Ele suspirou.
“Você quer mesmo ir lá pra casa?”
“Vamos”, ela disse, estendendo a mão para ele.
“Quer encontrar ele, é?”
Mas já não havia raiva na voz dele. Ela disse: “Se ele estiver lá, eu vou falar com ele. Dizer boa noite.”
Ele voltou ao passeio, ignorando a mão estendida dela. Começou a andar afastado, sempre alguns passos à frente.
Alguns metros depois, ela disse, rindo: “Quer parar com isso? Fica do meu lado, vai.”
Ele permaneceu com a cara amarrada, alguns metros à frente.
“Ei!”, ela disse, parando e puxando-o pela manga da camisa.
Ele se voltou. Ela então deu as costas a ele, e caminhou em sentido contrário, ereta, depois deu meia-volta e caminhou na direção dele, levando à boca um cigarro imaginário, num movimento sincronizado e metódico. Estava rindo.
"Deixa de palhaçada", disse ele.
Ela pegou o braço dele, ainda sorridente.
“É sério”, disse ela. “Eu gostei do sistema daquele cara. Andar de um lado para o outro. Deve ser um barato.”
Ficou em silêncio, pensativa.
“Por que seu irmão não gosta que se fale assim?”
“A gente não tá indo lá pra minha casa? Lá você pergunta a ele.”
Ela ignorou a grosseria.
“E se ele não estiver lá?”
“Ele nunca sai de casa.”
“Isso não é verdade. Vai, diz. Por que ele não gosta que a gente fale, andar de um lado para o outro? Tem outro nome pra isso?”
“Robertar”, ele disse, em voz baixa e olhando para o outro lado da rua, como se nutrisse a esperança que ela, não ouvindo direito, perdesse o interesse por aquele assunto.
“Robertar!” ela disse, rindo. “Mas é claro! Roberto, robertar!”
Ria agora com franqueza, divertida. E o encanto daquilo desanuviou um pouco o rosto dele, e ele descobriu-se disposto a falar.
“Foi ele mesmo quem inventou o nome?”
“Não”, ele disse.
“Quem foi? Seu irmão?”
“Minha mãe.”
Ela não escondeu a surpresa: “Sua mãe?!”
Ele suspirou.
“Um dia ela descobriu que eu e meu irmão, a gente ficava de madrugada andando de um lado para o outro, no nosso quarto, e perguntou o quê a gente tava fazendo. A gente não respondeu, e aí ela perguntou se a gente tava robertando. Foi nesse prédio mesmo, a gente morava no 4º andar.”
Ficaram em silêncio, e ele estranhou o silêncio dela, que não ria mais.
“Vocês ficavam andando de um lado para outro, no quarto de vocês, de madrugada, juntos?”
Ele fez que sim, com a cabeça.
“Por que vocês faziam isso?”
“Não sei”, ele disse. “Um dia eu cheguei em casa de madrugada, entrei no quarto e ele estava lá, andando de um lado para outro.”
“E aí?”
“Aí eu perguntei o que ele estava fazendo, e ele disse, nada.”
Ficaram em silêncio, novamente.
“E aí?”
“E aí? Não sei, Mônica. Não sei. Acho que eu comecei a andar, junto com ele.”
Caminhavam agora de mãos dadas.
“Vocês ficaram andando juntos?”
“É”, ele disse.
Experimentava novamente uma sensação de vergonha, por ter contado aquilo.
“Negócio ridículo, não?”
“Não”, ela disse, e repetiu, com vivacidade: “Não.”
“Tem tempo que a gente não faz mais isso.”
Era como se houvesse acabado de revelar, contando aquela história, um segredo profundamente íntimo, o único que jamais tivera.
“Por quê?”
“Por que o quê?”
“Por que vocês não fazem mais isso?”
“Não sei”, ele disse, depois de pensar alguns segundos.
Dali até a Prado Júnior nada mais foi dito. No apartamento tudo estava quieto. A mãe dormia no sofá, e a porta do outro quarto estava encostada. Eles foram direto ao quarto dele.
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Entrei no quarto. Havia um cheiro característico no ar.
“Oi”, eu disse, olhando para ela.
Ela sorriu.
“Tá sozinha?”
“Seu irmão tá lá no quarto dele.”
“Fazendo o quê, sem você?”
Ela riu.
“Fugindo de mim, eu acho.”
Tirei a camisa, e olhei para ela.
“Eu entendo.”
Ela ainda ria.
“Ele acha que eu sou muito complicada. Vive dizendo que eu devia namorar você, e não ele.”
Fiquei desconcertado, e imaginei coisas. Mas foi um pensamento breve e inconseqüente. Olhei para ela, não havia nem a sombra de uma segunda intenção nele.
“Ele disse isso, é?”
“Disse. Ele diz isso o tempo todo.”
“Eu entendo.”
Ela olhou para mim: “Ele nunca fala de mim pra você?”
“Não”, eu disse.
“Mentira...”
Eu ri. “Bom, às vezes ele fala...”
“E o quê que ele fala?”
“Nada”, eu disse.
Ela riu. “Quer dizer que ele fala de mim, mas quando fala não diz nada?”
“É, mais ou menos isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse: “Você fuma isso, é?”
“Você não sabia? Ele nunca te contou?”
“Não”, eu disse.
“Quer que eu pare?”
“Não, não”, eu disse.
“Você já experimentou alguma vez?”
“Não.”
“Nunca teve vontade?”
“Não.”
Sentei na cama. Eu estava dizendo a verdade. Ela estava sentada no chão, sob a janela.
“Foi pra isso que você veio pro meu quarto?”
“Não”, ela disse. “Ele não se incomoda, não. Ele também fuma, sabia?”
“Não”, eu disse. “Não sabia.”
“Mas só de vez em quando. Raramente, na verdade.”
“Eu entendo.”
Achei que ela estava preocupada, por ter revelado algo supostamente terrível. Fiquei olhando para ela, amistosamente.
“Você quer que eu saia? Quer ficar sozinho?”
“Não, não”, eu disse.
Ela riu.
“O que foi?”
“Ele me disse que você gosta de ficar sozinho.”
“Ele disse isso, é?”
“Não é verdade?”
“Provavelmente é”, eu disse.
“Ele tem ciúme de você. Ele acha que eu gosto de você. Que eu estou com o irmão errado.”
“Eu entendo”, eu disse, sem olhar para ela, agora.
Ela ficou em silêncio. Depois disse: “Acho que eu sentiria por você o que eu jamais poderia sentir por ele.”
“O quê?” eu disse.
“Eu não sei.”
Olhei para ela.
“Sabe”, ela disse, num rompante, levantando-se e sentando ao meu lado, na cama.
“O quê?”
“Ele me mostrou hoje um cara que vocês conhecem.”
“Quem?”
“Roberto. Foi vizinho de vocês, na Bolívar.”
Há muito tempo eu não pensava nele, mas a recordação foi instantânea.
“Foi mesmo?”
“Foi.”
“Vocês viram ele lá?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Ele ainda mora lá”, eu disse, vagamente.
Ficamos em silêncio. Eu disse: “E o quê vocês foram fazer lá?”
Ela sorriu, brevemente.
“Ele me contou”, ela disse.
“Contou o quê?”
“Sobre o que vocês faziam, de madrugada, no quarto de vocês. O que ele descobriu que você fazia no quarto, de noite.”
Sorria, de forma encantadora. Fiz uma careta de espanto: “O quê eu fazia no quarto de noite? Alguma coisa escabrosa?”
Ela riu. Eu disse: “Ele falou sobre o robertismo?”
“Robertismo?”
“É”, eu disse. “Nós éramos os seguidores de Roberto, o Peripatético. Os robertistas. Bom nome pra uma banda de rock.”
Eu não sabia a razão, mas me sentia tomado por uma súbita necessidade de manter aquele sorriso no rosto dela.
“Ele foi nosso precursor. A partir do exemplo dele, nós criamos nosso movimento, o robertismo, que não era filosófico nem literário, mas era movimento. Nós o superamos e diversificamos, incluindo variações de percurso, robertismo a dois, com sincronização perfeita de passadas e tudo, uma série de inovações.”
O sorriso persistia, mas agora com um aspecto mecânico, cansado, quase doloroso.
“O nome do nosso movimento foi na verdade inspirado por uma observação inculta da minha mãe.”
Enquanto eu falava, ela me olhava nos olhos, que eu procurava desviar. O dela era um olhar franco e desprotegido, e não muito fácil de sustentar.
“Vocês ainda fazem isso?”
“Isso o quê?”
“Andar de um lado para outro, no quarto.”
“Não”, eu disse. “Quer dizer, muito de vez em quando. Agora cada um tem o seu quarto.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“E é diferente, agora.”
“Diferente por quê?”
“Eu não sei.”
E, depois de alguns segundos: “Acho que a gente hoje tem... menos pensamentos na cabeça. Naquela época acho que a gente sonhava mais, eu não sei. A gente nem percebia que tava andando, eu acho. Era diferente.”
Olhei para ela.
“Você tá bem? Tá triste?”
“Não.”
“Esse negócio aí não te faz bem”, eu disse, apontando para o cigarro ainda na mão dela.
Ela sorriu. Para não ter que suportar o silêncio, eu disse:
“Naquela época era tudo diferente.”
Ouvi um som familiar. Levantei, e ela teve um sobressalto.
“Aonde você vai?”
“Lugar nenhum”, eu disse.
Fui até a janela.
“Vem cá.”
Ela veio. Fiz um sinal de silêncio, e apontei para a janela de um apartamento, dois andares abaixo. Lá estava o braço magro e pelancudo, de mulher, atravessado entre as lâminas da persiana fechada, segurando uma espátula e limpando a sujeira no batente da janela. De repente o braço parou, como se soubesse que estava sendo observado, e depois retomou o serviço. Saímos da janela.
“Quem é?”
“Não sei”, eu disse. “Todo dia ela limpa o batente da janela, três, quatro, cinco vezes.”
“Mas não está sujo.”
“Mas ela limpa, mesmo assim.”
“Que loucura”, ela disse.
“E nunca levanta nem abre a persiana.”
“Você já viu ela?”
“Nunca”, eu disse, mas por um momento a imaginei com o rosto da velha que embrulhara o marido morto na lona, na Bolívar, no sétimo andar.
Estávamos de costas para a janela, observando o quarto.
“O quarto era bem diferente desse”, eu disse. “Era bem maior. E era para os dois, eu e meu irmão.”
“Isso fazia alguma diferença?” ela disse, como se soubesse, desde sempre, do que eu estava falando.
“Não sei. O quarto era maior, tinha um... apêndice, com uma janela, que dava para a Barata Ribeiro. Minha cama ficava nesse apêndice. E tinha uma cama de casal, onde meu irmão dormia.”
Era uma outra necessidade súbita e inexplicável, a de descrever minuciosamente o cenário.
“É como se o quarto fosse um L. o apêndice era a base do L.”
“E tinha uma cama de casal?”
“Tinha. A gente alugou o apartamento já mobiliado.”
Ficamos em silêncio, enquanto a imagem do quarto se tornava cada vez mais nítida em minha mente. Havia alguns quadros nas paredes, todos tendo como motivo gatos, um ou dois novelos de lã, e um onipresente pires de leite.
“Eu andava rodeando a cama de casal, fazendo um U. foi assim que ele me viu, na noite em que ele descobriu e se juntou a mim. Aí ele começou a andar junto comigo, só que ele fazia uma linha reta, junto à parede oposta à da cabeceira da cama, onde ficava o armário embutido.”
Eu queria dar uma descrição bem detalhada, queria que ela soubesse exatamente o que acontecia. Talvez para evitar que ela interpretasse mal a situação, ou para que não pensasse que havia alguma coisa errada ou patológica naquilo tudo. Eu queria ter certeza que ela estava visualizando, na mente dela, o cenário e os atores da mesma forma que eles agora apareciam em minha memória.
“Às vezes, não sei por que, ele incluía o apêndice onde ficava minha cama no percurso dele. Eu tinha que ficar esperando junto da cabeceira da cama de casal até que ele voltasse, pra não quebrar a sincronia. Pra gente não colidir no meio do caminho.”
“Por que ele fazia esse percurso maior?”
“Não sei. Às vezes ele fazia isso.”
Ficamos em silêncio. Eu disse:
“Não que o meu percurso ou o dele fossem fixos. Quem chegava em casa primeiro pegava a parte da cama de casal, e o outro ficava com o da linha reta.”
Suspirei, tomado por uma terceira súbita necessidade, a de encerrar a confidência.
“Depois a coisa perdeu o encanto, eu acho.”
“Por quê?”
Dei de ombros. “Não sei”, e fiz um gesto vago com a mão.
“Acabou ficando uma coisa meio mecânica, eu não sei. É como você ser obrigado a ficar rindo, quando uma pessoa tem a mania de contar uma piada duas ou três vezes, uma atrás da outra, e você tem que ficar rindo, porque foi engraçado da primeira vez. Chega uma hora que o rosto dói, de ficar rindo forçado.”
Ela me observava, encantada. Sorria. Pensei em perguntar novamente se ela estava triste, mas não o fiz. Ela não diria, se estivesse. E eu sabia, desde sempre, que não era tristeza, era alguma outra coisa.
Imaginei que a conversa estivesse encerrada. Mas ela disse:
“Por que vocês andam hoje com menos pensamentos na cabeça?”
“Não sei”, eu disse.
“Antes vocês falavam ou ficavam calados?”
“A gente ficava calado. Quer dizer, algumas vezes ele chegava em casa de madrugada e ficava querendo me impingir as densas anedotas boêmias dele, fresquinhas ou em segunda mão, mas ele falava, falava, falava, e eu não ouvia nada. Aí ele desistia e a gente ficava calado, mesmo.”
Ela já não sorria. Mas estava, eu tinha certeza, de alguma forma encantada com tudo aquilo, com aquela inusitada confidência, como se houvesse nela algum componente extraordinário que eu já não conseguia discernir.
“É fascinante descobrir coisas assim”, ela disse.
“Que coisas?”
“Isso, esse negócio de vocês dois, sozinhos, andando juntos de um lado para outro, de madrugada, num quarto no meio dessa loucura toda... ainda existem santuários a descobrir, é isso, e vocês descobriram um.”
Dei de ombros.
“Agora já não faz diferença. O santuário já foi violado, saqueado...”
“Não”, ela disse, “não foi, não.”
Olhei para ela: “Eu pensei que você ia dizer que era melancólico, descobrir essas coisas.”
Ela não respondeu. Eu disse, rindo: “Isso pode ser tudo, menos fascinante.”
“É ruim, se for melancólico?”
“Não”, eu disse, depois de alguns segundos.
Ela disse, com vivacidade: “Pode ser melancólico, mas é fascinante, também. Se eu tivesse descoberto isso antes, eu...”
“Você ia ser uma robertista, também?”
“Por que não?”
Eu ri.
“Bom, deve ter coisa mais melancólica do que robertar, eu acho.”
Ficamos em silêncio.
“O que me deixava feliz”, eu disse, “ou mais leve, eu acho, é que... fazendo aquilo, eu...”
Ela me observava, indagadora. Como uma adolescente prestes a descobrir alguma coisa, qualquer coisa.
“... eu não sei...”
“O que você sentia?”
Olhei para ela. Eu queria responder, de alguma forma.
“Eu não sei”, eu disse, baixando a cabeça.
“Mas era bom?”
Ela parecia estar se agarrando a alguma coisa, qualquer coisa, que não conhecia, mas que eu, de alguma forma, poderia revelar a ela.
“O quê?”
“O que você sentia.”
Desviei o olhar dela.
“Era”, eu disse, mas sem outra intenção que não a de interromper a seqüência de perguntas.
“E por que você não tenta de novo?”
“Tentar o quê?”
“Andar! Pra você se sentir como se sentia na época!”
“Agora? Aqui?”
“Claro! Por que não? Eu e você, aqui, agora. Vem!”
Estendeu-me a mão. Sorria, quase radiante, e estava linda. Fiz um gesto de desânimo. Ela se aproximou de mim, mais perto do que jamais havia chegado antes, e me olhava nos olhos.
“Vem”, ela disse. “Eu e você, agora, aqui nesse quarto.”
Estava um pouco agitada, e eu não sabia como dizer não.
“Nesse quarto? Não dá, não tem espaço.”
“Claro que tem!”
Eu ri, mecanicamente, olhando em torno.
“Não. Não dá.”
“Por quê?”
Deitei-me.
“Não sei. Mas não dá.”
Deitado, eu olhava o teto, e não a via mais. Sentei-me, então, num movimento rápido, e ela voltou ao meu campo visual.
“Mônica...”
Ela não disse nada. Olhou em torno, brevemente, e então saiu do quarto. Deitei novamente. Tentei realmente lembrar o que me fazia feliz, ou mais leve, antes, quando andava de um lado para outro, dentro do quarto, de madrugada, com a cabeça cheia de pensamentos e fantasias, mas não consegui. E mesmo que conseguisse, não teria como dizê-lo a ela. Pensei em tentar na prática, agora que estava só, mas desisti. Vesti a camisa e saí de casa.
Acho que fui levado também pela idéia meio romântica de encontrar aquela garota, Cris.
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Entrei em casa, fiquei alguns segundos no escuro. O apartamento parecia a rua. Uma brisa soprara no instante em que eu abrira a porta.
Fui até o quarto do meu irmão. Lá, a janela, que dava para a rua, estava aberta, e a cortina esvoaçava do lado de fora. Recolhi a cortina e fechei a janela, fui para o meu quarto e me joguei na cama.
Senti frio, mas era como se estivesse sentindo algo de que já me esquecera. Alguma coisa me contraía a boca, em intervalos regulares. Cerrei os punhos, e abri os olhos.
Estava mais escuro que o habitual.
Batiam à porta. Eu estava banhado em suor. Fiquei sentado alguns segundos, pensando no que tinha acontecido. Senti aquela tristeza habitual, palpável. Mas era preciso abrir a porta.
O porteiro da noite e um homem que se identificou como policial estavam lá. Como as pessoas que haviam passado por mim na rua, olharam para mim, para minha camisa, com espanto. Algumas coisas foram ditas. O porteiro parecia não saber o que fazer. Era um homem simples e modesto. O polícia perguntou:
“Seu irmão está em casa?”
“Não”, eu disse.
Olhou para o porteiro da noite.
“Quer descer conosco?”
Depois de alguns segundos, percebi que a pergunta fora dirigida a mim. Olhei para o porteiro.
“Por quê?”
“Por favor”, disse o polícia.
Fechei a porta atrás de mim, sem fazer barulho, para não acordar minha mãe, que dormia no sofá.
“O que aconteceu?”, eu disse.
“É o que queremos saber, também”, disse o polícia.
Olhei para ele. O pensamento dele ia numa direção, o meu em outra. Olhei para o porteiro:
“Que foi que meu irmão fez?”
O polícia pegou em meu ombro: “Seu irmão?”
Desvencilhei-me dele.
“Que foi que meu irmão fez?” eu repeti, olhando para o porteiro.
O porteiro me olhava, com tristeza. Eu nunca havia reparado muito nele. Encostei a cabeça na parede do elevador. O polícia me olhava, olhava minha camisa.
“Cara, eu não acredito”, eu disse. “Por que ele foi fazer um troço desses? Por que ele tinha que sair do percurso?”
“Percurso? Que percurso?” disse o polícia.
Chegamos à calçada. A aglomeração parecia não haver aumentado muito, desde o momento em que eu havia passado por ali, ao chegar em casa. Havia um rabecão estacionado ali perto.
Abrimos caminho entre os curiosos. O polícia me pegou pelo braço, e me fez inclinar para baixo, na direção do corpo.
“Conhece?”
Olhei para ela, os cabelos ruivos enegrecidos pela poça de sangue.
Desvencilhei-me novamente dele, e recuei alguns passos.
“Era a namorada do seu irmão, não?” perguntou o polícia.
Olhou para mim, e disse alguma coisa ao porteiro. Eu os vi falando, mas não ouvi nada.
“Será que você tem alguma idéia de como ela veio parar aqui?”
Olhei para ele. Não havia como responder. Ele me olhou, olhou minha camisa, e riu: “Vamos.”
Lembrei então meu aspecto, a camisa manchada. Olhei para ele:
“O senhor não está pensando que...”
“Eu não tô pensando nada, garoto.”
Estavam colocando o corpo no rabecão. Paramos para olhar.
“Vamos”, disse o polícia.
A delegacia era o lugar deprimente que se podia esperar, mas nada do que vi lá me causou maior impressão. Meu irmão chegou quase uma hora depois, e depusemos ao delegado por um tempo. Meu irmão havia discutido com Mônica, antes e depois de minha conversa com ela, mas nada que já não houvesse acontecido antes. Declarou que nunca havia notado qualquer impulso daquela natureza nela. O delegado só insistiu em saber o motivo que o levara a sair de casa e deixá-la sozinha, mas ele alegou não saber que eu também havia saído, e o delegado não insistiu mais. Os pais dela foram avisados, mas nenhum dos dois apareceu na delegacia, pelo menos enquanto eu estive por lá.
Minha aparência também exigiu algumas explicações. Por fim, fizeram um curativo em meu nariz, e alguém me deu uma camisa branca, de malha, com a inscrição Polícia Civil nas costas.
Quando saí de lá, a claridade da rua bateu em cheio nos meus olhos, e eu me senti como se houvesse acabado de desembarcar em algum país estrangeiro, em outra estação do ano, diferente, que eu não conhecia.
Nos separamos, eu e meu irmão. Fiquei na rua, sem saber o que fazer. Fui ao cinema.
Só voltei para casa à noite. Minha mãe dormia no sofá, como de hábito, com a televisão ligada. Desliguei o aparelho, e fiquei alguns instantes em pé, no meio da sala.
Pela porta entreaberta do quarto do meu irmão uma sombra passava, em intervalos regulares.
Fui para o meu quarto, e fechei a porta. O quarto era pequeno, e meus pensamentos eram poucos. Coloquei a cama atravessada no meio do quarto, com a cabeceira junto à parede oposta a da janela, formando um U, e comecei a andar em torno dela. Depois de alguns minutos, eu já não sabia onde estava, e já não tinha nenhum pensamento na cabeça.

Anos 80, zona sul do Rio...tudo isso deve ter acontecido

A GRANDE MANCHA VERMELHA Ela chegou na hora de sempre. Começou a tirar a roupa ainda na sala, ligou a televisão e sentou no sofá, como fazia todos os dias, quase deitada, com as pernas esticadas, as coxas grossas, a calcinha cavada, formando um v enorme.
Eu tinha um daqueles binóculos que se fechavam como uma carteira de bolso. Meu primo estava comigo. Provavelmente vinha lá da Bolívar só para ver a garota. Quando ela saiu da sala nós saímos da janela, e ficamos alguns instantes em silêncio.
“Será que ela já voltou?”
“Não sei”, ele disse. Fez um gesto de desânimo, pressionando os olhos com os dedos, e sussurrou: “Cadê essa puta, porra?!”
Rimos juntos, baixinho, no escuro. Ele disse:
“Quê que tá passando hoje?”
“Cinzas e Diamantes.”
“Onde?”
“Na ABI. Hoje e amanhã, eu acho.”
“Tu vai ver?”
“Não sei.”
“Tu já viu esse filme?”
“Já.”
“E vai ver de novo?”
“Não sei.”
“Eu já vi?”
“Não sei.”
“Quê que ela deve estar fazendo, agora?”
“Tomando banho, eu acho.”
“Que parte do corpo ela tá lavando agora?”
“A que ela usa pra trabalhar.”
Falávamos baixo, para não acordar minha mãe, que dormia no sofá, no outro ambiente da sala.
“Tem jogo domingo?”
“Cara, eu nem sei.”
Ele levantou e tornou a debruçar-se na janela.
“É ela”.
Levantei também, mas sem a mesma sofreguidão de outros dias.
“Cara, essa mulher é gostosa”, ele disse.
“Será que tem outros caras olhando ela, agora?”
Meu primo esticou o pescoço para fora da janela.
“Acho que não. Nesse teu prédio só mora velho. Por que vocês vieram morar aqui?”
“Não sei.”
“Será que ela sabe que a gente fica olhando ela?”
“Acho que não. E, se sabe, ela gosta.”
“Por quê?”
“Mulher gosta de ser admirada, cara.”
“Por adolescentes espinhentos?”
“Nunca dá pra ver a cara dela direito.”
“É.”
“Meu irmão disse que ela tem o rosto comprido. Tem o queixo comprido.”
“Teu irmão conhece ela?”
“Não sei. Mas ele disse que viu ela outro dia, aí na Viveiros de Castro. Esse prédio aí dela dá pra Viveiros de Castro.”
“Porra, foi mesmo? E ele falou com ela?”
“Ele disse que ela tem cara de pistoleira.”
“O quê é isso?”
“Puta, eu acho.”
“Ela não é puta. Ela trabalha.”
“Puta também é profissão”.
“Quê que ela faz, de verdade?”
“Sei lá.”
Ficamos em silêncio.
“Nós não somos mais adolescentes, somos? Quer dizer, tecnicamente a gente ainda é, eu acho.”
“Não sei. O que é ser um adolescente, tecnicamente?”
“Lembra do Grande Mancha Vermelha?”
“Lembro”.
Grande Mancha Vermelha fora colega de ginásio nosso, alguns anos antes. Também era conhecido como Capitão Júpiter. Tinha a habitual coleção de espinhas no rosto, como quase todos nós, com a peculiaridade de possuir uma vermelha, imensa, que parecia migrar de um ponto a outro do rosto, periodicamente. Certa vez, tendo ele faltado às aulas uma semana inteira, correra o boato de que ela havia se alojado bem na ponta do nariz dele, motivo pelo qual ele se recusava terminantemente a sair de casa.
“Tu tá muito intelectual, hoje. Quem devia estar aqui pra conversar contigo era aquele judeu maluco. Como é mesmo o nome dele?”
“Tu tá careca de saber o nome dele. Ele tá na Venezuela.”
“Na Venezuela?”
“Já tem um mês ou mais, eu acho.”
“E que porra ele foi fazer na Venezuela?”
“Foi morar lá, num asram, ou ashram, eu não sei direito.”
“O quê é isso?”
“É uma comunidade de esotéricos, ou coisa assim.”
Meu primo riu.
“Eu não disse que ele era doido?”
A conversa e a sessão de voyeurismo estavam encerradas, mas ele ainda não havia percebido. Falamos mais algumas bobagens, e após os respectivos e cada vez mais breves acessos de risadas convulsivas, ele foi embora, e eu fiquei sozinho.
A janela do meu quarto dava para a área de serviço do prédio. Fui até lá: no sétimo andar, dois abaixo do meu, atravessado entre as lâminas da persiana fechada, estava o braço magro e pelancudo, de mulher, segurando uma espátula e limpando as fezes dos pombos. De repente, como sempre acontecia, o braço parou, como se soubesse que estava sendo observado, e logo depois retomou o serviço. Fiquei observando ainda por alguns segundos.
Dormi então, e acho que sonhei. Acordei banhado em suor. O rádio-relógio iluminava o quarto com seu clarão vermelho, e marcava quatro e quinze. Escutei então os gemidos. Vinham do quarto do meu irmão. Na época ele namorava uma garota ruiva, Mônica, que tinha um sobrenome quilométrico.
Fui até a sala, onde minha mãe dormia. Estava cada dia mais surda, portanto não havia perigo, mesmo que estivesse acordada. Voltei ao meu quarto, mas os gemidos continuavam. Tapei os ouvidos com o travesseiro, mas era inútil. Sentei na cama. Eu não podia continuar ali, ouvindo aquilo, então decidi sair.
O dia ainda não começara a clarear, e eu fui andando em direção à praia. Sentei em um banco do calçadão. Um casal se aproximava, vindo do Leme. Andavam lado a lado, de mãos dadas. Vinham bem colados um ao outro, depois se afastavam, estendiam os braços, mãos dadas ainda. Uma espécie de dança. Ouvi o rapaz dizendo:
“A gente tá fazendo papel de idiota, Cris.”
“É claro que estamos”, disse ela. Sentou ao meu lado. Trajava uma espécie de bata indiana, algo que parecia estar na moda, então.
“Você se importa de nós estarmos fazendo papel de idiotas, na sua frente?”
“Não”, eu disse.
“Tá vendo?” ela disse ao rapaz. “Ele não se importa.”
Mas o rapaz não gostou muito de dividir a atenção dela, e foi embora logo depois, sem que eu percebesse. Ela, obedecendo a um curioso e inexplicável impulso que acometia as mulheres que se aproximavam de mim, me fez confidente ali mesmo. Pai ausente, mãe insuportável, uma irmã de dez anos, autista, e uma sensação desagradável de não ter o que fazer no mundo. O que eu poderia dizer? Nessas horas, deixava tudo a cargo de meu sorriso, o magnífico. O efeito era infalível. Não lembro quanto tempo passamos juntos.
“Tchau, Cris”, eu disse.
“Os pescadores já estão chegando para o arrastão”, ela disse.
“É”, eu disse, olhando na direção deles.
“Vamos lá ver?”
“Ver o quê?”
Ela deu de ombros. “O que eles estão trazendo do mar.”
“Não”, eu disse. “Acho que eu vou para casa. Vou ver se ainda consigo dormir um pouco.”
“Tchau”, ela disse.
“Tchau.”
Ela foi andando em direção aos pescadores. A movimentação do arrastão já começara. De repente, ela parou e voltou-se para mim, rapidamente, mas não me olhou nos olhos nem disse nada. Deu as costas e foi embora.
À noite fui ao cinema, sozinho. Na saída eu desci as escadarias, em meio à multidão e seus aparatosos comentários sobre o filme. Uma garota de cabelos cacheados e ombros nus descia a meu lado. Sem olhar para ela, percebi que ela me observava. Ao chegarmos ao térreo, estávamos lado a lado.
“Eu vi você, na sala de espera”, ela disse.
Minha resposta foi a habitual: meu sorriso, o magnífico. O efeito foi infalível.
“Você estava...tão sério.”
“Eu estava só pensando”, eu disse.
“Você está sozinho?”
Fiz que sim com a cabeça.
“Eu também prefiro ver esse tipo de filme sozinha”, ela disse. “Você vai pra onde, agora?”
“Pra casa, eu acho.”
Andávamos ainda lado a lado.
“Você gostou do filme?”
“Eu já tinha visto, uma vez.”
“É mesmo? Eu achei lindo.”
“É um filme muito bonito, mesmo.”
A imagem que sempre ficava em minha cabeça era a do Cristo crucificado, de cabeça para baixo, numa igreja abandonada.
“Você vai pra que lado, agora?”
Havíamos chegado a uma esquina.
“Eu vou pra lá”, eu disse, apontando na direção da Glória.
“Vai pegar ônibus, também?”
“Eu acho que vou a pé”, eu disse.
“Ah, você mora por aqui?”
“Eu moro em Copacabana.”
Ela me olhou com espanto. “Você vai andando até Copacabana?”
“Eu moro na Prado Júnior.”
“Você não tem medo, não?”
“Eu já fiz isso algumas vezes, e nunca fui assaltado.”
Era verdade. Ficamos em silêncio.
“Tchau, então”, ela disse.
“Tchau.”
No caminho, já em Botafogo, passei por diversos bares, com mesas nas calçadas, apinhadas de gente. O som estridente de muitas vozes chegava aos meus ouvidos. Sentei numa mesa. Esperei alguns minutos, mas ninguém veio me atender. Levantei, e enquanto me certificava de que ninguém estava vendo, fui abordado por uma garota, vestida caracteristicamente, que me disse algo que não ouvi direito. Respondi um monossílabo qualquer.
“Tá sozinho?”
“Você nem imagina como.”
Ela voltou a dizer algo que não ouvi direito. Julguei ter ouvido a palavra ‘evitar’.
“Evitar o quê?”
“A solidão”, ela disse, como se soubesse do que estava falando. Talvez soubesse, mesmo.
Olhei para ela. Falava cantado. Eu até queria conversar. Sentia-me triste, aquela tristeza habitual, espessa. A garota provavelmente não alcançava essas sutilezas, e não havia como explica-las, pelo menos em linguagem que ela entendesse. Aquele pensamento não foi suficiente para amenizar meu estado de espírito, mas o foi para que meu sorriso, o magnífico, fizesse uma breve aparição, e o efeito foi infalível.
“Você parece tão triste”, ela disse. “Por quê? Aconteceu alguma coisa?”
Ela trazia um rosto de Cristo, com aqueles raios de luz por trás da cabeça, como no filme. A correntinha descia pelo pescoço, e a cabeça do Cristo ficava aninhada entre seus seios.
“Você vem sempre aqui?”
“Não”, eu disse.
“Não que ficar um pouco comigo?”
“Eu não tenho dinheiro.”
Ela riu. Olhou para o interior do bar, como se procurasse alguém.
“Não faz mal. Eu gostei de você. Você tem um lugar?”
“Tenho”, eu disse.
“Onde é?”
“Copacabana.”
“Copacabana? Tão longe assim?”
“É o único lugar que eu tenho.”
Ela suspirou. “Tudo bem.”
Pegamos o 572, e durante o curto trajeto, alguns passageiros nos observavam distraidamente. Descemos na Bolívar.
“Você mora aqui?”
“Não”, eu disse.
“Onde é que a gente tá indo?”
Andamos até a portaria do prédio onde eu morara até alguns poucos meses antes. O porteiro da noite dormia no hall. Bati no vidro e chamei: “Batatinha!”
O apelido era em razão da semelhança dele com aquele amigo do Manda-Chuva.
“Fica ali na porta da garagem”, eu disse, empurrando-a para lá.
Depois de incontáveis batidas no vidro com meu chaveiro, Batatinha acordou. Veio até a porta, com cara de sono, abriu-a e disse: “Quem é vivo sempre aparece. Seu irmão esteve aqui hoje. Mas nem demorou.”
“Foi mesmo? Com quem?”
“Com aquela garota do cabelo vermelho.”
“Ah, sei. E aí?”
“Vai no 704.”
“Valeu. Cadê a chave?”
Ele foi até um reservado e de lá voltou com um molho de chaves. Tirou uma delas e me entregou.
“É da porta de serviço.”
“Valeu.”
“Meia hora, viu?”
Deixei o dinheiro na mão dele.
“Não vai me complicar, viu?”
“Tudo bem, Batata.”
Entrei com a garota pela garagem. Ela parou em frente à porta do elevador. Puxei-a pelo braço.
“A gente vai pela escada?”
“É”, eu disse. “Não faz barulho.”
“Que andar é?”
“Sétimo.”
Ela parou. “Você vai me fazer subir sete lances de escada?”
“Fala baixo”, eu disse.
“A essa hora todo mundo já tá dormindo.”
“Por isso mesmo.”
“Você já morou aqui?”
“Já.”
“Espera um pouco”, ela disse, parando. “Deixa eu descansar um pouco.”
“Tá cansada, já?”
“Claro. No prédio onde eu moro tem elevador.”
“Aqui também tem. Mas a gente não pode usar. Podia complicar o Batatinha.”
“Tá todo mundo dormindo, a essa hora.”
“Eu sei. Mas a gente não pode usar. Vamos.”
Quando chegamos ao sétimo andar, eu disse: “A gente vai pro 704. Eu vou lá e entro. Se eu não voltar logo é porque tá tudo limpo. Aí você vem. Sem fazer barulho. Eu vou deixar a porta só no trinco.”
Ela esticou a cabeça para frente e viu o corredor que se bifurcava.
“Espera”, ela disse. “Onde fica esse 704? Pra que lado eu vou?”
“O 704 é por ali, tá vendo? Espera um minuto e depois você vem. Sem fazer barulho.”
“Eu já sei”, ela disse.
Fui até o apartamento, abri a porta sem fazer barulho, e entrei, deixando a porta no trinco. Logo depois a garota entrou.
“Acende a luz”, ela disse.
“Não precisa.”
“Mas eu não tô vendo nada”, ela disse.
“Dá a mão.”
Passamos abaixados pela área de serviço, entrando no interior do apartamento.
“A essa hora tá todo mundo dormindo”, ela disse, um pouco irritada.
“Fala baixo.”
“Ninguém vai ver que a luz tá acesa.”
“A gente não pode arriscar. Os vizinhos sabem que o apartamento tá vazio.”
“A gente pode fingir que tá procurando apartamento.”
“A essa hora?”
“Quê que tem?”, ela disse, ficando na ponta dos pés para me beijar.
.................................................................................
Alguns minutos depois estávamos deitados lado a lado.
“Você vai me dizer, agora?”
“Dizer o quê?”
“Por que você estava triste em Botafogo?”
“Eu não estou triste em Botafogo”, eu disse, e tive uma sensação estranha. Uma espécie de paramnésia. Alguém que nunca estivera em Botafogo dissera algo parecido, em algum lugar.
“Mas estava”, ela disse.
“Era melancolia”, eu disse.
“Melancolia?”
“É. É uma palavra grega, eu acho. Tem a ver com o fígado, ou coisa parecida. Uma indisposição qualquer no fígado provoca tristeza.”
“Você comeu alguma coisa estragada, hoje?”
“Não”, eu disse. “Quer dizer, acho que não.”
Estávamos deitados no chão da sala, e eu vi uma sombra mover-se sob a porta. Levantei-me de um salto. Havia perdido a noção do tempo. Fui até a área de serviço, e entreabri a porta.
“Quer complicar minha vida, Tonho?”
“Foi mal, Batata. A gente já tá saltando fora.”
Voltei à sala. A garota estava sentada. Cobria os seios com as mãos.
“Vamos”, eu disse.
Comecei a me vestir. Ela levantou, e procurava minha boca.
“Vamos ficar mais um pouco.”
“Outro dia”, eu disse.
“Eu quero te ver de novo.”
“Qualquer dia desses”, eu disse, tentando me desvencilhar dela e calçar os sapatos.
“Eu estudo”, ela disse, de repente.
Parei, tentando entender o anacoluto, e olhei para ela.
“Bacana”, eu disse.
“Eu quero ser veterinária.”
“Quando eu ficar doente, eu juro que procuro você.”
“Eu não tenho ninguém, e a única maneira que eu achei pra pagar meus estudos foi essa.”
“Eu entendo”, eu disse. “Por que você não me disse antes? Você tá tendo prejuízo, perdendo tempo aqui comigo.”
“Eu gostei de você”, ela disse.
“Eu também”, eu disse, mas não a olhei nos olhos.
Toquei o rosto dela, e beijei-a na boca. Ficamos abraçados alguns segundos.
“A gente pode descer de elevador”, eu disse, constrangido por não ter nada a dizer.
Ela não disse nada.
“Eu vou ver se tá tudo limpo.”
Deixei a porta no trinco, e fui até o hall dos elevadores. Tudo calmo e deserto. Voltei ao corredor do 704, e minha mão já estava sobre a maçaneta quando a porta do 703 se abriu. Senti um frio me percorrer a espinha. Pensei em entrar rapidamente no apartamento, sem olhar para o lado, mas não consegui.
“Mocinho?”
Era uma senhora, bem velha, de camisola, que me olhava com ar benevolente. Meu sorriso, o magnífico, respondeu a pergunta dela. O efeito foi infalível.
Ela sorriu para mim. Fez um sinal com o indicador, para que eu a seguisse, e entrou no apartamento, deixando a porta aberta. Fiquei sem saber o que fazer. O mais certo seria pegar a garota e sair correndo, mas eu ainda estava no mesmo lugar quando a velha voltou, armada do mesmo sorriso, e disse: “Mocinho...”
“Senhora?”
Ela novamente fez sinal com o indicador, e entrou no apartamento. Aproximei-me da soleira da porta. Lá dentro tudo parecia muito iluminado, em contraste com o breu do 704, e a penumbra do corredor. Quando entrei no apartamento, a velha estava na entrada do corredor que levava aos aposentos interiores. Parecia estar me esperando, e repetiu o gesto familiar com que me chamava.
Eu a segui, mesmo com uma incômoda sensação de que aquilo já estava indo longe demais. Ela estava agora parada em frente a um dos quartos, também bastante iluminado. O quarto dela, provavelmente. Parei um instante, angustiado, tentando imaginar o quê aquela velha poderia querer comigo, no quarto dela.
Quando entrei no quarto, ela estava do outro lado da cama de casal, sorrindo. Deitado na cama, estendido, quase esticado de tão magro, um velho dormia, com as mãos pousadas em cruz sobre o peito.
Ela então veio para o meu lado. Bem próximo a ela, observei sua pele lisa, transparente. Fez um sinal para que eu me afastasse um pouco. Abaixou-se ao lado da cama. Tive nojo de mim mesmo, mas não pude deixar de notar alguns detalhes do corpo dela, nítidos sob a camisola fina. Ela estava sem roupa íntima. Virei o rosto e tive um impulso de sair correndo dali. A velha retirava algo que estava guardado sob a cama. Com esforço, já ofegante, ela se aprumou e colocou sobre o colchão, ao lado do velho adormecido, uma grande lona enrolada. Após retomar o fôlego, ela puxou a lona para o lado desocupado da cama, começando a desenrolá-la. Ao terminar, fez um sinal para que eu me aproximasse, e segurou o velho pelas canelas.
Olhei para ela. Compreendi que ela queria deitar o velho sobre a lona. Fiquei parado sem ação, enquanto ela balançava suavemente as pernas do velho. Ele estava morto. Diante da minha hesitação, ela começou a gesticular de forma inarticulada. Segurei desajeitadamente a cabeça do velho, e coloquei-a sobre uma das extremidades da lona. Ela começou a enrolar a lona, com o velho dentro. Ao terminar, com pequena ajuda minha, estava novamente ofegante.
Pensei que era tudo, e dei as costas para ir embora.
“Mocinho...”
Voltei-me, e vi que ela apontava em direção à porta. Indicava o velho com a cabeça, e apontava para a porta. Compreendi que ela queria tirá-lo dali.
“A senhora quer levar ele pra onde?”
Ela começou a gesticular novamente, nervosa, repetindo os gestos que fizera com a cabeça e as mãos, freneticamente. Fiquei nervoso, também. Peguei a cabeça do velho, ela o segurou pelas canelas, e lá fomos nós, carregando uma lona com um defunto dentro corredor afora. Tive medo de ter um acesso de riso, ou de tropeçar, qualquer coisa assim. Quando chegamos à sala, eu comecei a descer minha ponta da lona, mas ela não fez o mesmo, e entendi que não era para a sala que ela queria transportar o velho. Sem saber para onde ir, parei, exasperado. Com a cabeça, ela indicava a porta do apartamento, e fez menção de prosseguir o trajeto interrompido. Já fora do apartamento, olhei para a porta do 704, que estava fechada. Quando chegamos ao hall dos elevadores, depusemos enfim a lona no chão. Encostei-me na parede, e limpei o suor da testa com a costa da mão.
“Mocinho...”
A velha me indicava a porta de um dos elevadores. Como eu não saísse do lugar, ela mesma apertou o botão. Ouvimos o estardalhaço das máquinas.
Quando o elevador chegou, ela sinalizou para que eu abrisse a porta. Ela foi ao apartamento, e de lá voltou com uma pedra na mão, que devia usar para impedir que as portas dos cômodos do apartamento dela batessem com o vento. Colocou-a na porta do elevador, para mantê-la aberta. Depois voltou e segurou novamente sua ponta da lona, observando-me para ver se eu fazia o mesmo. Peguei então minha ponta, e entramos na cabine. Eu já ia depondo a cabeça do velho no chão do elevador, quando percebi que ela novamente se agitava, freneticamente. Mexia com a cabeça, fazendo um movimento que indicava minha posição, de cima para baixo, repetidas vezes. Entendi novamente o que ela queria. Com dificuldade, ajeitamos a lona para que ela e seu conteúdo ficassem de pé, encostada na parede da cabine.
Recostei-me, então, como o velho na lona, na parede, e fechei os olhos. Estava cansado, suado. De repente senti algo extremamente suave tocando meu rosto, e estremeci, arrepiado. A imagem nítida da garota apareceu em minha mente, e eu me voltei para ela. Quando abri os olhos, a velha recolhia a mão que me havia afagado o rosto.
“Mocinho...”
Ela olhou para a lona, com tristeza, deu as costas e tirou a pedra que mantinha aberta a porta do elevador. Esta se fechou pesadamente, e o elevador ficou parado. Apertei o T e desci com o velho.
No hall do prédio Batatinha já dormia, novamente. Deixei a chave sobre a mesa, e fui embora. Resolvi ir andando para casa, pelo calçadão. Tudo de diferente que poderia ocorrer comigo naquele dia já acontecera. No meio do caminho fiquei imaginando se a garota havia ido embora ou se ainda estava no 704, me esperando. Mas isso era tão ridículo quanto improvável.
Em casa, entrei no quarto. Havia um cheiro característico no ar.
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Saí de casa. Acho que fui levado também pela idéia meio romântica de voltar a encontrar aquela garota, Cris, na praia.
O dia ainda estava escuro, e eu fiquei andando pela areia, descalço. Sentei. Quando o céu apenas começava a clarear, fui até o banco onde me sentara, na véspera. Estava um pouco mais frio. Olhei para os lados, tudo estava deserto. Baixei a cabeça e fiquei olhando para o chão. Estava olhando para o chão quando ouvi uma voz atrás de mim:
“Ei!”
Olhei para trás. Eram três caras. Um deles sentou ao meu lado.
“E aí?”
Passou o braço sobre meu ombro.
“Tem o quê pra gente aí?”
Tirei o braço dele do meu ombro.
“Nada.”
“Que é isso, garotão?” disse ele tornando a passar o braço sobre meu ombro. “Que violência é essa?”
Fiz menção de levantar.
“Já vai? Agora que a gente tá chegando tu vai embora?”
Fiquei calado, e olhei para ele.
“Sabe o que é, garotão...”
Aproximou o rosto do meu, e disse, bem próximo: “É que a gente tava por aí...e sabe como é, o movimento foi fraco...”
Os outros começaram a rir. A voz do que falava comigo era alternadamente grossa e fina, como a de um adolescente cuja voz está mudando.
“...e tu aí, a toa, sozinho...”
Os risos aumentaram.
“Será que...será que tu não...”
Revirou os olhos, e passou a língua sobre os lábios, debochadamente. Os outros continuavam rindo, e emitiam outros sons, também.
“E aí, meu irmão? Não vai dizer nada?”
“Dizer o quê?”, eu disse.
“Isso. Não diz nada. Vamos fazer o seguinte. Vamos dar umas bandas por aí.”
Puxou-me pelo braço. Eu resisti, e os outros me cercaram.
“Quê é isso, meu irmão? Vamos aproveitar o dia. A praia. Olha a praia aí. Tu tá muito branco.”
Eu estava só. Estivera só, com a garota, Cris, naquela mesma praia, com a garota na saída do cinema, com a outra no 704. Estivera só, com todas elas. Mas agora era uma solidão diferente, devassada. Era muito diferente.
Quando chegamos à beira do mar, o líder dos caras disse:
“Tu vem sempre aqui a essa hora?”
“Não”, eu disse.
“Então tu deu um azar desgraçado, meu irmão.”
Riu, o que soou como um comando para os outros, que começaram a rir também.
“Tu anda com esses dois aí pra quê? Pra servir de claque?”
“Ih, olha só, ele fala!”
Pararam de rir. Os outros me observavam, creio que ofendidos.
“Que violência é essa, meu irmão? A gente só quer levar um papo.”
“Por que vocês não levam um papo entre vocês mesmos? Ou vocês não tem o que dizer uns pros outros?”
Os três se entreolharam. Fiz um gesto de impaciência, dei as costas e comecei a andar em direção ao calçadão. Eles começaram a andar em torno de mim. De repente o líder tirou algo de um bolso. Ouvi o som da mola, e a lâmina saltou.
“Tá indo pra onde, garotão? A gente ainda não te liberou.”
Eu havia parado. A ponta da lâmina estava bem próxima ao meu nariz.
“Não gostou da gente, garotão?”
Estávamos frente a frente. Um deles ria, mas o outro agora estava sério. Olhei bem para eles. Não deviam ter mais de quinze anos.
“Bora, Gaspa”, disse o que estava sério. “Deixa esse mané aí.”
“Não, porra! Eu ainda nem comecei com ele.”
“Bora, deixa esse cara aí.”
O líder se virou para encarar o motim, e nesse instante a lâmina avançou e cortou minha narina. Senti o sangue quente sobre os lábios.
O líder olhou para mim, pálido com o susto.
“Merda!”
Levei a mão ao nariz, pensando em limpar o sangue, mas só consegui espalhá-lo ainda mais.
“Tá vendo o quê tu fez?”, disse o líder ao amotinado.
“Cai fora”, disse o outro, me empurrando.
Deram as costas e saíram correndo, pulando e dando risadas. O líder brandia a faca de mola em direção aos outros, que se esquivavam e riam. Não olharam para trás.
Fui até a beira do mar, e afundei o rosto na água salgada. Senti de imediato uma forte ardência, e levantei. Não tinha lenço, nada que pudesse usar para limpar o sangue no rosto, então puxei a camisa e usei-a para esse fim. A camisa ficou suja de sangue. Fui andando para casa, indiferente, e as poucas pessoas que passavam pelas ruas àquela hora me olhavam espantadas, sem que eu soubesse o motivo.
Na frente do meu prédio havia uma aglomeração de pessoas, mas eu não me interessei, aproveitando para entrar sem ser visto. O dia estava clareando.
Entrei no elevador. Havia sangue seco no meu lábio superior, como um bigode. Quando saí do elevador, tudo parecia diferente. O corredor era estranho, a pintura das paredes parecia haver descascado da noite para o dia, as próprias portas dos apartamentos estavam diferentes. 701 e 702. Eu havia apertado o 7, dois andares abaixo do meu. Era o andar onde morava a velha que limpava o batente da janela, com uma espátula, todos os dias, com a persiana fechada. Voltei ao elevador, antes que alguma coisa diferente acontecesse.
Entrei em casa, fiquei alguns segundos no escuro. O apartamento parecia a rua. Uma brisa soprara no instante em que eu abrira a porta.
Fui até o quarto do meu irmão. Lá, a janela, que dava para a rua, estava aberta, e a cortina esvoaçava do lado de fora. Recolhi a cortina e fechei a janela, fui para o meu quarto e me joguei na cama.
Senti frio, mas era como se estivesse sentindo algo de que já me esquecera. Alguma coisa me contraía a boca, em intervalos regulares. Cerrei os punhos, e abri os olhos.
Estava mais escuro que o habitual.
Batiam à porta. Eu estava banhado em suor. Fiquei sentado alguns segundos, pensando no que tinha acontecido. Senti aquela tristeza habitual, palpável. Mas era preciso abrir a porta.
O porteiro da noite e um homem que se identificou como policial estavam lá. Como as pessoas que haviam passado por mim na rua, olharam para mim, para minha camisa, com espanto. Algumas coisas foram ditas. O porteiro parecia não saber o que fazer. Era um homem simples e modesto. O polícia perguntou:
“Seu irmão está em casa?”
“Não”, eu disse.
Olhou para o porteiro da noite.
“Quer descer conosco?”
Por um momento olhei para ele sem entender. Então me lembrei da aglomeração em frente ao prédio. Exatamente embaixo da janela do quarto do meu irmão. Revi então, mentalmente, o caminho que fizera, ao entrar no apartamento minutos antes, da porta até a janela. Lá, alguma coisa dentro de mim parecia ter-se debruçado na janela aberta, e olhado para baixo, para o vazio.