quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Notas soltas sobre acordes repetitivos

Um Parto (Parte da coletânea Velhos Olhos Castanhos) Taciane e Sílvio fizeram parte da fauna por pouco tempo. Haviam alugado o 405. Ela fazia artesanato, que vendia em Ipanema, na feira – me convidara inclusive a ir lá, um dia desses – e ele era poeta. Imprimia pequenas plaquetas, com suas poesias, e me pedia que as lesse em voz alta. Taciane era muito branca, tinha cabelos castanho-claros encaracolados, e aparência não muito saudável. Ao menos era essa a minha impressão. Ele, evidentemente, cultivava uma imagem, cabelos longos, óculos de aros redondos, barba por fazer. Estava sempre assim. Deu-me exemplares de três livrinhos seus, mandados imprimir por ele mesmo. No apartamento deles eu senti, pela primeira vez, o cheiro de cigarros de maconha. Ofereceram-me, uma vez, mas eu recusei.
Conversar com Sílvio era ser submetido a uma saraivada de nomes de autores, estilos literários, períodos, e esse tipo de coisa. Taciane o observava nessas horas, enquanto se ocupava de seu artesanato, evidentemente apaixonada. E eu me perguntava - com ar de quem estava muito interessado no que ele falava, o que diabo tinha ela visto naquela figura esquálida e recitativa. Mas isso, de qualquer forma, não era da minha conta. O quê ela teria visto em mim, igualmente? Sílvio me achava extraordinariamente sensível (palavras dele), e acho que tentava, de alguma forma, me cooptar, me transformar num poeta, ou coisa que o valha. Ele também me achava extraordinariamente (tinha uma queda por esse ‘extraordinariamente’) receptivo, o quê quer que isso significasse, mas em verdade o que eu gostava mesmo era de ver Taciane, armando colares de contas, esculpindo pequenas peças em madeira, sentada como o Buda, com uma bata bem curta e sem calcinha, bem à minha frente. È claro que eu, às vezes, me perguntava se já não havia passado da idade de apelar para esse voyeurismo, ainda que involuntário, mas que diabo!, era ela que proporcionava o espetáculo, ainda que involuntariamente, também. E me perguntava, também, se Sílvio saberia ou não o verdadeiro motivo de meu comparecimento, dia sim, dia não, para apreciar o espetáculo de sua inteligência em movimento e tomar conhecimento daquele mundo tão extraordinário, naturalmente guiado por ele, enquanto tentava, furtivamente (creio eu), distinguir o que era pêlo e o que era pele naquele pequeno trecho de paraíso com iluminação indireta.
Enquanto ele falava, cada dia mais verborrágico, Taciane não dizia nada, observando respeitoso silêncio. Provavelmente jamais passou por sua cabeça a idéia de que sentar-se, de bata curta e sem calcinha, frente a frente com um estranho, pudesse ser algo indecente, ou mesmo impróprio. As pessoas sentavam-se, e era só, não importando o que estivessem vestindo, ou, no seu caso, o que não estivessem vestindo.
Aquilo durou algumas semanas, talvez um mês. Ficou claro que não havia qualquer malícia da parte dela, nem sequer a sombra de uma segunda intenção, pois ela pouco olhava em minha direção, e, quando o fazia, era apenas um relance. Quando o espetáculo perdeu o gosto da novidade, eu deixei de ir lá. Aquilo era coisa de adolescente, e de certa forma me repugnava continuar agindo como um. Permanecia apenas uma certa contrariedade, despertada por aquela devoção de Taciane por Sílvio. Ciúmes, provavelmente, mas eu nada sabia a esse respeito. Talvez sequer tenham dado pela minha falta. Ela não era diferente de ninguém, não era diferente de Rosângela, que não tinha ocupação conhecida e era tão mais acessível. Mas o que me atraía em uma não era a mesma coisa que me atraía na outra. Era como se não sentisse desejo realmente por ela, mas quisesse ficar perto. Com Rosângela, uma vez passada a febre, cessava a vontade de ficar perto.
Um dia eu estava imerso em pensamentos (talvez os do parágrafo anterior), quando Taciane veio me procurar. Reclamou da minha ausência, perguntando-me se ela havia feito qualquer coisa que justificasse tão prolongado afastamento. Eu disse que não, claro. Contou-me, então, que Sílvio tinha ido embora. Mas não era nada demais. Ela apenas revelara a ele que estava grávida, e que, dessa vez, não abortaria. Depois de algumas semanas de comportamento estranho e ausente, respostas lacônicas e reticentes, ele desapareceu. Ela estava com aparência ainda menos saudável que o habitual.
No apartamento dela, os poucos móveis, agora, davam ao local a aparência de um lugar prestes a ser abandonado, do qual não se guardarão boas recordações, mas difícil de ser deixado para trás, da mesma forma. Ela me mostrou um papel, uma notificação de despejo, creio eu. Do que ela falou, de modo confuso e entrecortado, eu deduzi que o aluguel era pago por Sílvio, ou melhor, pelos pais dele, que também custeavam a impressão de suas plaquetas. A notificação era endereçada a ele. Taciane me disse que já entrara em contato com seus pais, que moravam em outro estado, anunciando que em breve estaria de volta, e pedindo que lhe mandassem dinheiro para a passagem. Entendi que a notícia não fora muito bem recebida lá, no Paraná, ou Santa Catarina, não lembro ao certo, e que isso a deixara abatida. Fiquei melancólico, ouvindo aquilo.
Perguntei a ela se estava grávida, mesmo, pois quase não tinha barriga alguma. Ela então levantou a bata, que a disfarçava bem, embora fosse muito pequena. Sutiã também não era um item em seu vestuário. O quê eu poderia fazer por ela? Ela confessou então que me procurara para pedir que passasse a noite com ela, pois não se sentia bem. Tivera, na noite anterior, um pesadelo terrível, e não queria ficar sozinha. Concordei na hora, sem hesitar, mas era como aceitar o convite de uma irmã para dançar. Perguntei como fora o pesadelo, mas ela não soube dizer. Dormimos juntos, eu com o braço passado sob sua nuca, ela com a cabeça abandonada sobre meu peito.
De manhã, gemidos sufocados de dor me despertaram. Ele já não estava a meu lado, estava fora do colchão, de cócoras, e, ao me ver acordado, passou a chorar baixinho, soluçando dolorosamente, enquanto um líquido escuro e viscoso saía do seu corpo e alagava o assoalho. Fiquei alguns segundos sem ação, mas aquilo durou pouco. Vi que havia algum dinheiro em minha carteira, e alguns minutos depois estávamos na rua, ela enrolada num lençol, eu descabelado, mandando o porteiro conseguir um táxi urgente. A caminho do hospital, Taciane não falava nada, respirava irregularmente, e tinha tremores. Chegando à Emergência, onde ela foi colocada numa maca, eu fiquei aguardando que algo acontecesse. Pouco depois a levaram para dentro, e pessoas de branco começaram a fazer perguntas que eu não sabia responder. Pré-natal, quantos meses, coisas assim. Eu nada sabia a respeito. De repente me vi sozinho. Mas não por muito tempo. Um médico veio em minha direção, trazendo consigo uma legião. Enfermeiras, parentes de pacientes internados, de feridos graves, todos querendo atenção. Dei um passo para trás, para dar passagem, mas ele falou comigo. As pessoas ao seu redor falavam também, perguntavam, esbravejavam, exigiam respostas. Fiquei sabendo vagamente que meu filho nascera prematuro, e que estavam tentando salvá-lo, e à minha esposa, também. O médico e sua legião se afastaram, com estrépito, e era como se algo, no vácuo de sua passagem, houvesse apagado as luzes, e sugado todo o ar do mundo, para que nenhum som mais se propagasse. Saí daquele ambiente doentio. Mas lá fora nada melhorou. Sentei-me numa amurada. Eu continuava com a sensação de surdez, enxergava com dificuldade, olhava os carros silenciosos, e procurava arrancar algum som deles, de algum lugar, dos pneus, de seus passageiros ocultos pela sombra. O dia era claro, ensolarado, e era um dia normal, mas algo irrompera nele, vindo não sei de onde. Algo irrompera no dia, na vida, e eu não sabia o que era.

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